TV de cachorro

Quem aqui se lembra como era a vida há cinco anos? A gente acordava, lia o jornal, trabalhava, faltava na academia, via TV, fazia ou não umas coisas (se era namorado recente, talvez a gente transasse; se era marido, talvez a gente lesse; se era nada, talvez a gente saísse) e dormia. Ah, sim, e entremeando esses momentos, a gente se alimentava.

Hoje inverteu tudo. Agora o importante é comer como as celebridades fitness do Instagram ou como os chefs renomados dos reality shows e, nos intervalos, quiçá, trabalhar, respirar, transar, ler e dormir. Hoje eu já acordo com uma espécie de carrasco dentro do meu cérebro: sem pressa, sem glúten, sem farinha, sem açúcar, sem lactose, sem hormônios, sem agrotóxicos, sem sódio, sem sal nenhum, sem gordura trans, sem gordura nenhuma, sem transgênicos, sem parabeno (ops, esse é na maquiagem), sem o animal ter sofrido, sentada, sentindo o sabor, sementes. Às vezes tudo isso me dá tanta tristeza e preguiça que apenas bebo água. Ainda vão inventar a água orgânica. Putz, acabei de procurar água orgânica no Google e… tarde demais!

Quem aqui se lembra como era a televisão há cinco anos? Artistas faziam novelas, seriados, plásticas. Agora eles fazem moqueca de redução de escalope de avestruz cru, salpicão de feijão tropeiro reeditado a partir da espuma de feijão carioca que na verdade é um tofu com algas e penne ao limone, mas a massa do penne é feita de lula que é feita de nozes e o limão é abacaxi revisitado. Todo mundo tem um programa que ensina a cozinhar. Cozinhar hoje é o novo “atacar de DJ”. Não foi escalado pra próxima das nove? Não conseguiu nem um papel como amiga da alma penada da novela espírita das seis? Então mostra pra gente a sua versão da panqueca de camarão! Nem tudo está perdido!

Sábado fui almoçar no restaurante de um chef que admiro muito. Um lugar que eu sempre ia e era quase um segredinho meu. Fui avisada logo na entrada por uma produtora: “Estamos documentando a vida dele para um reality e todo mundo que vem aqui pode aparecer no programa”. Eu só queria comer. O sucesso é muito brega. Sim, tem que ganhar dinheiro, tem que aproveitar, eu faria o mesmo, mas, ainda assim, o sucesso continua sendo muito brega. Fui comer no restaurante ao lado.

Onde foi parar aquele iogurte que a gente bebia, de manhã, enquanto enfiava uma roupa porque estava atrasada? Tenho a impressão que se eu comer “qualquer coisa” hoje, só pra “resolver a fome”, pandinhas bebês morrerão de depressão. Aquele almoço “vou ali na esquina engolir um troço” já já vira crime, homicídio doloso “não tinha a intenção de matar, mas machucou muita gente proferindo aquelas palavras”. Hoje a gente vê fotos da Xuxa com crianças, trajando um maiô PP e saia transparente e acha estranho. Que doideira esses anos 80! O que vamos achar, daqui a 20 anos, de um reality que estressa crianças de oito anos para que elas saibam fazer pato trufado?

Que minuto foi esse em que todas as pessoas e programas de TV e revistas e sites e redes sociais decidiram que comida é a coisa mais importante do mundo? Por que vocês vão pra Roma, Paris, Buenos Aires, sei lá, qualquer cidade linda, e só tiram fotos de pratos e cardápios e da cara de espertões que vocês fazem porque estão em algum lugar que o guia Michelin mandou? E os guias que falam sobre pracinhas, pessoas, parques, museus e arquitetura?

tati

Tati Bernardi – Folha de São Paulo

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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