Desde o já distante 24 de fevereiro, quando a Rússia invadiu a Ucrânia, sofro de “insônia internacional”, assim como o amigo do Rubem Braga. Segundo o jovem cronista contara na revista Diretrizes, nos idos de 1939, esse amigo vivia aflito com as notícias da Europa. Além de devorar todos os jornais, atravessava as horas ligando para agências telegráficas e Redações dos diários.
“Ele acaba de me telefonar, declarando: ‘Estou inteiramente pessimista, acho que tudo vai acabar em paz'”.
Felizmente –ou infelizmente–, as notícias da Europa hoje chegam nesta contínua cascata, enfileirando desgraças nas telas dos nossos celulares. Ao contrário do amigo do Rubem Braga, não antevejo paz no fim do túnel. Não me surpreenderia se daqui a pouco ogivas nucleares estiverem cortando os céus. Talvez a culpa da minha descrença na humanidade seja do insuperável cronista.
Reunidas no livro “Uma Fada no Front”, as crônicas de 1939 nos falam de um mundo fervilhando, com forças antagônicas se armando para o enfrentamento. Um tempo de extremos, radicalizado, bélico, à flor da pele. Era só questão de um lunático começar para tudo voar pelos ares.
Nas páginas, o cotidiano em Porto Alegre, para onde Rubem Braga se mudara após deixar Diretrizes e o Rio de Janeiro, é protagonista. Mas até um passeio na rua da Praia exala a tensão da época.
No dia em que a Alemanha declarou guerra à Polônia, em 1º de setembro, ele já estava bem instalado na capital gaúcha, publicando diariamente na Folha da Tarde e no Correio do Povo. Alugara um pequeno apartamento na rua Dr. Flores, em frente à famosa confeitaria Rocco. Naquela manhã modorrenta, chuvosa e fria, batucava a Remmington, com o rádio ligado, quando uma voz grossa se sobrepôs a voz fina de uma mulher que cantava um samba molengo.
“De repente o samba recuou, quase sumiu, baixinho, para um fundo longe – e uma voz grossa de homem leu um telegrama”, contou, na crônica intitulada “Setembro, Chuva”: “A voz grossa falou em 200 aviões bombardeando uma cidade, tropas avançando por quatro pontos da fronteira, aviões lutando sobre o mar, generais conferenciando com ministros. Depois, a voz forte parou – e se ergueu outra vez a melancólica voz de mulher cantando o seu samba mole”.
E lá estava a anunciada guerra, enfiando-se despudoradamente na calma manhã do cronista: “Não, isto é demais! Imaginem os senhores que eu abri todas as válvulas e o sr. Vicente Celestino aproveitou para berrar uma canção”.
O texto é um primor. Entre as notícias do front e anúncios de vinho, Rubem Braga ouviu surpreso Aracy de Almeida cantando “Camisa Amarela”. Porém, para o seu desgosto, logo viria uma sequência de tangos.
Ao correr as linhas, eu pensava no Twitter, a guerra na Ucrânia sumindo, sendo engolida pela fúria de Deltan Dallagnol e pelos novos trambiques do governo Bolsonaro. Nas duas primeiras semanas que se seguiram ao início do conflito, virei noites, acometida do grau máximo de “insônia internacional”, voyeur da batalha digital. Só de vez em quando arriscando um palpite. E a Otan? Pois é, não sei.
De um lado, Vladimir Putin no papel de doido varrido, cercado de telefones, a encarnação de um vilão saído de “Agente 86”, o saudoso seriado dos anos 1980. Do outro, Volodimir Zelenski encarnando um duvidoso herói, que proíbe partidos de esquerda e dispara pronunciamentos clamando por uma intervenção que levaria à terceira guerra mundial. Os símbolos nazistas nas fardas do Batalhão Azov me causam arrepios.
Na revista The New Yorker, li uma interessante entrevista, a voz dissonante do cientista político John Mearsheimer. Considerado o mais famoso crítico da política externa norte-americana, ele reafirma o que vem dizendo desde 2008: os Estados Unidos, ao pressionar a expansão da Otan para o leste, aumentaram, sim, a probabilidade de guerra.
“Não é imperialismo, isto é política de grande potência. Quando você é um país como a Ucrânia e vive do lado de uma grande potência como a Rússia, você tem que prestar muita atenção no que os russos pensam, porque se você pegar um pedaço de pau e cutucar os olhos deles, eles vão retaliar. Os Estados do hemisfério ocidental entendem isso muito bem em relação aos Estados Unidos.”
Faltou combinar com os russos? No fim das contas, a razão mesmo está com Rubem Braga: “É doce afastar os olhos das negras notícias que os jornais trazem da velha Europa, é doce desligar o rádio de ondas curtas cheio de palavras de ódio e de mortes e simplesmente sair pela rua”. Antes que o mundo acabe!