Um animal sem arreios

É fácil humilhar um ser humano: basta outro ser humano.

Pisotear o próximo – taí o sapateado favorito de quem cai na dança da competição. O negócio é subir a qualquer custo, desde que quem pague seja o de baixo.

Estranho o modo como é incômodo isso de pisar nos outros. Na verdade, se entendermos que pisar em alguém seja realmente pôr um ou dois pés em alguém, independentemente do motivo, até que não dói tanto não.

O que machuca mesmo, que fere profundamente, é o pisoteio metaforizado. Quando um empregado se acha por cima e resolve calcar seu pé existencial na alma de outro funcionário. Quando usa a personalidade que desceu pra sola enquanto ascendeu na carreira.

Parece que “pisar” metaforicamente causa mais dor e maior dano, e assim é. Numa pisada pra valer, daquelas vindas a pontapé ou chute, essa atinge o corpo e marca, pega na carne e castiga. Mas não passa disso. É golpe dado e sentido, violência explícita e acabada. Em pouco tempo o superficial desaparece e todos estão prontos pra outra.

Agora, pensem em agressão moral. Essa sim é de doer. Vem da força dos que não têm força – só poder. E o hematoma é no espírito, logo abaixo da pele. Onde o amor-próprio funciona.

Esse pisoteio, fruto estragado do pomar onde lutam por um lugar ao sol, mesmo longe da beira da piscina, atinge o íntimo do íntimo de quem o recebe. Nem precisa pontaria. Vai direto dos tímpanos ao âmago de cada um.

“Pisotear” já se tornou coisa comum entre as coisas mais comuns entre as pessoas.

Não tenho mais saco pra assistir a tantas pisoteadas. O muro da dignidade virou cerquinha e o espaço alheio agora é uma zona. Tudo isso piorou a partir de mil e novecentos e bosta. E foi agravado de vez com o neoliberalismo, essa canga desumana no pescoço da sociedade. Na prática, ninguém é mais intocável no expediente.

Comento isso assim, sem mais nem menos, porque outro dia vi, na rua, dois cavalos se estranhando e trocando coices. E os coices não acertavam. Eram fajutos. Quem sabe um acordo de cavalheiros.

E pensei comigo: os tais eqüinos, se quisessem ter sucesso em levar adiante uma das mais impactantes características da espécie – a patada – fariam melhor se procurassem certo tipo de gente (vá lá, também são). Bastava procurar a turma do poder intermediário em empresas, firmas, indústrias, bancos, lojas, repartições – gerentes, chefes, supervisores, encarregados e donos de funções e cargos com um mínimo de hierarquia e uma máximo de prepotência. Esses cavalos receberiam lições cavalares.

A natureza humana não me surpreende. O que me espanta é ainda não ter desenvolvido cascos.

(Texto de antigamente, republicado em homenagem aos animais com arreios)

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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