Um balanço da vida

Quando completou… ou melhor, quando “desfez” (como ele preferia dizer) 76 anos, Rubem Alves – cuja sentida ausência fez um ano em julho passado – escreveu um artigo que, como de costume, levou seus leitores, admiradores e discípulos a refletir. Aliás, este sempre foi um dos maiores propósitos de Rubem: botar mentes em funcionamento. Daquela feita, depois de citar Vinícius e o poema Haver, no qual o “Poetinha” faz um balanço da vida, Rubem confessou que também estava no tempo de fazer um balanço entre as suas dívidas e os seus haveres. E alertou que o dele se dividia em três partes.

Contou que na primeira fase o seu mundo era do tamanho do universo e habitado por deuses e verdades absolutas. Na coluna do “haver”, a esperança era do tamanho da luz do sol ao meio-dia.

Na segunda fase, seus haveres encolheram: “Meu mundo passou a ser habitado por heróis revolucionários que portavam armas e cantavam canções de transformar o mundo”. Já a esperança, que antes iluminava o universo todo, passou a iluminar apenas os horizontes da história.

“Na terceira fase”, prossegue Rubem, “mortos os deuses, mortos os heróis, mortas as esperanças teológicas e políticas, fiquei pobre de verdade e o meu mundo se encolheu mais ainda, e chegou não à sua verdade final, mas à esperança final, que teima em se alegrar com coisas pequenas”.

Vinícius definiu a esperança como “pequenina luz indecifrável”. Rubem Alves a diferenciava do otimismo, afirmando que este é um “sorriso por causa de, quando há razões para sorrir”, enquanto a esperança é o “sorriso a despeito de, quando não há mais razões para sorrir”.

Fiquei comovido com tais definições, como, de resto, com tudo o que Rubem dizia e escrevia. Mas, como se não fossem elas suficientes, ele foi além e sublinhou que, em verdade, “não ter esperança é estar em paz, não ter causas por que lutar, o fim do esforço…”. Em outras palavras, “viver o presente, o presente apenas, como se o futuro já não se anunciasse, como se fosse inútil saber o que ele anuncia”. Sabedoria pura, que nos leva a meditar sobre a própria vida.

Tenho hoje alguns anos menos dos que Rubem tinha. Ou tenho alguns anos a mais por “desfazer” (um, dois, dez, meio, só Deus sabe). Mas penso mais ou menos como ele. Aliás, como tenho costumeiramente registrado aqui, nossos pensamentos se afinavam e ainda continuam a se afinar uma enormidade – ele me permitia esse atrevimento. Também já passei pelo universo habitado por deuses e verdades; já tive os meus heróis reformadores do mundo, que cantavam canções revolucionárias; hoje, contento-me com a companhia do “ranger” italiano Tex Willer e do baixinho gaulês Asterix. Superman, Batman e Homem-Aranha foram assassinados por editores incompetentes. O Fantasma Voador, Flash Gordon, Tarzan, Zorro e Mandrake não existem mais. Nem Ferdinando, de Brejo-Seco; Brucutu, de Mu; Mafalda, de Quino; ou os Peanuts, de Charles Shulz.

Mas quedo-me em dúvida: será que eu e o meu querido Rubem não elegemos os nossos deuses, as nossas verdades e os nossos heróis errados? Ele dizia que, no outono da vida, se alegrava com coisas pequenas. Eu também. Sobretudo se essas pequenas coisas forem aquelas que eu tanto amo, como ele amava: um raio de sol, a gota do orvalho, um jardim de flores, o ipê florido, os pinheiros, o crepúsculo, a vida na roça, riachos de águas transparentes, cachoeiras, uma onda de espuma espraiando-se na areia, uma joaninha, as borboletas, os sabiás e os pintassilgos, o voo do beija-flor, os sinos da igreja, o canto gregoriano, o presépio, os amigos, a música, as crianças, a poesia de Vinícius, de Adélia e de Mário Quintana.

Estas sim são as coisas importantes da vida. Nunca os hipócritas, os cínicos, os oportunistas, os canalhas, os poderosos de plantão, os exploradores da ignorância popular, o Deus vingativo das religiões, os vestibulares, as escolas que trituram os alunos, os assassinos da natureza, os homens de negócios, a ganância, a arrogância, a inveja… Eles passarão, como disse Quintana. Nós, como Mário, passarinho.

Rubem Alves concluía definindo-se como “uma catedral em ruínas”. Não era verdade. Com o seu olhar de menino e o seu coração de criança, tinha ainda muito a ver e a amar. E se nada mais tivesse a aprender, teria sempre o que ensinar. No fundo, ele sabia que, mesmo quando a escuridão parece tomar conta de tudo, alguém sempre carregará uma chama.

céliodoisBlog do Zé Beto

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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