Um cabelo não é um homem

Ao fundo do corredor, à porta do quarto de cama, a armadura medieval apruma-se na sua cascata de prata, a simbolizar o repouso noturno dos guerreiros. Recém-chegado de viagem mais longa, o ciumento Otelo encontra-se à mesa, erguendo no ar o motivo da sua sanha, como quem sugere que em qualquer coisa está, indefectívelmente, podre no Reino da Dinamarca.

Ofélia, sua bela e jovem esposa, reflete nos olhos uma líquida indiferença shakesperiana, semi-voltaica,mastigando lentamente, com a parcimônia comedida das donas que querem economizar e emagrecer. Ou apenas render o peixe.

– Um cabelo de homem no camarão! – grita o marido, colérico.

O relógio de caixa alta dá alguma horas fatídicas.

– Tu bem sabes – diz ela, pacientemente – que não entram homens lá em casa.

– Nem camarões – clama o iracundo Otelo -. E no entanto eu estou a comer um pastel de camarão – faz uma pausa. Examina o rosto angélico e tranquilo de Ofélia. Tem uma idéia. levanta-se, vai ao salão, à escrivaninha e extrai de uma das gavetas a lupa providencial de descobrir traições ao pé. Regressa à sala de jantar, senta-se pesadamente no caldeirão, mira a esposa de soslaio, pega no pastel aproximando a lupa.

– Cabelo grosseiro – afaste-se com nojo -. Curto, luzidio – observa-o de novo -. Oleoso, preto, banalíssimo.Cabelo de plebeu. Cabelo de homem, completa.

Impávida, a bela mulher vai comendo ao retardados.

– Um cabelo dentro de um pastel. Eis ao que chegou o muido dos comentários, dos pecaminosos. Mundo cão, mundo burro, mundo boi, universos de cornos! – dá um murro na mesa.

– Se não gosta dos pastéis – murmura Ofélia, com todos os seus encantos a saltitarem do lado de lá da mesa – far-te-ei um omelete!

– Tudo o que possas fazer terá por força um homem lá dentro.

– A folha  de uma árvore não é uma floresta. Uma gota de água não é um oceano – aflorou aos lábios o copo de vinho -. Um cabelo de homem não é um homem – limpa os cantos dos lábios ao guardanapo e sorri com todo o seu poder de persuasão feminina, para finalizar: – Abre todos os pastéis que quiseres. Não encontrarás ninguém.

Furioso, Otelo retira outro pastel da travessa.

– Um pastel – uiva ele, raivoso – esconde muita gente! – Leva-o à boca e prega-lhe uma dentada tremenda!

Um grito de dor, um grito metálico, parte lá de dentro, dos fundos da casa, do interior da armadura.

*Santos Fernando, do livro Absurdíssimo – Humor para humoristas – Editorial Nórdica Ltda, Rio de Janeiro/GB, 1972.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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