Era óbvio. Um agente do serviço secreto invadira minha modesta sala de aula.
Ali eu lecionava, para uma turma de jornalismo, uma matéria chamada Introdução à filosofia, pela qual, aliás, os futuros jornalistas não demonstravam muito interesse. Aos trancos e barrancos eu tocava o barco sem pretensões de formar novos pensadores ou de produzir qualquer revolução sociocultural.
Estava eu cumprindo a minha tarefa quando citei o filósofo Platão. Mal terminei a frase onde encaixara o nome do filósofo grego, e o tipo lá da última fila de carteiras ergueu o braço pedindo a palavra.
Respirei fundo esperando pelo pior. Mas, como é de lei, dei a palavra a ele.
Ele carregou um pouco no tom de deboche e disse:
– Professor, não acha que esse tal de Platão era meio comunista?
Levei um susto, claro. Os alunos saíram da pasmaceira jornalística costumeira e um deles jogou a mão contra a testa. Já era alguma coisa.
Recuperado do susto, eu perguntei:
– Veja… como é mesmo o seu nome?
Ele agitou-se na cadeira e disse que ainda não se matriculara.
– Mas tem um nome, claro.
Ele disse que sim, mas não declinou o nome. Devia ser mesmo um agente secretíssimo. Fui em frente.
– Olha, meu caro, Platão viveu no século IV antes de Cristo e as ideias comunistas só passaram a circular no século XIX depois de Cristo. Uma distância de uns vinte e três séculos.
Ele se retesou na carteira.
Continuei:
– Assim, por mais brilhante que fosse a mente de Platão, ele não poderia prever o que aconteceria vinte e três séculos depois. Enfim, nem mesmo a palavra comunismo fora inventada. Além disso, o que será “meio comunista”?
Silêncio tumular na sala e uma cara de fera enjaulada por parte do sujeito.
Nos anos da ditadura militar estávamos sujeitos a esses constrangimentos – e a outros, piores. Não era raro surgirem nos corredores da universidade tipos de cabelo escovinha, fortões e sisudos, que entravam em salas de aula ou onde houvesse alguma palestra. E lá ficavam com olhos tensos em busca de perigosos comunistas.
Depois saíam de fininho rumo a alguma saleta do DOPS para anotar em fichas o que haviam conseguido em sua perpétua luta contra os perigos do pensamento filosófico, do qual, é claro, não entendiam coisa alguma.
Nos dias que correm, já tivemos um ministro que gostaria de vigiar conteúdos de aula e transformar professores em espiões de perigosos agentes da subversão, os alunos. Esse ministro se foi, trocado por outro de igual truculência. Além disso, o presidente anunciou o desejo de fulminar, a golpes de cortes no orçamento, o estudo da Filosofia e da Sociologia. Vejam só: a Filosofia tem pelo menos 25 séculos de vida e ele quer acabar com ela por decreto.
Já imaginaram a pobreza intelectual à qual seríamos condenados?
Se, com as liberdades vigentes, não se consegue deslanchar a educação no Brasil, o que será de nós sob a vigilância de tipos como aquele da última fila de carteiras?