A francesa Colette, sensualista antes de qualquer “erotismo”; bissexual assumida antes de todo e qualquer modismo GLS; e feminista antes de todo e qualquer feminismo, reinou, alguma vez tirânica e equívoca, sobre a cena intelectual da primeira metade do século passado. A introduzir nos “tempos modernos” que se insinuavam, uma avalanche de escândalos.
Nascida no interior da França, conquistou logo a cosmopolita Paris não só com sua arrogância, inusual em “emigrados”, como sobretudo por seu talento – múltiplo, “midiático”, surpreendente. Escritora, atriz, repórter, ensaísta, foi a primeira crítica de cinema da história, com sua célebre coluna na revista Film.
Ao ganhar o Nobel em 1952, François Mauriac se desculpou com ela ao telefone, considerando-se, face ao brilho da “divine” Colette, não merecedor da honraria. Idolatrada e odiada, era escritora prolífica, embora confessasse que não gostava de escrever. “Eu não gosto de escrever. Não só não gosto de escrever, como gosto principalmente de não escrever” – fazia blague.
Nascida Claudine, Colette já começa causando espécie ao adotar para si o sobrenome feminino por excelência, do pai. E sob o signo de tal patronímico, se torna universalmente conhecida como escritora. Está visto que não é pretensão destas linhas resenhar aqui o irresenhável. O livro de Kristeva é um monumento ao saber. Complexo é o mergulho na personalidade de uma escritora que ousou, mais do que reinventar a literatura de seu tempo, afrontar, pela via do “prazer sensual” em amplo sentido, o belicismo de um século que, a par do progresso científico, se revela canhestro e selvagem.
Não pouca coisa para uma interiorana que se autodefinia a homenagear a inenarrável mãe Sidonie (a também célebre Sidô) com todas as letras: “Eu sou filha de uma mulher que em uma regiãozinha obscura abriu sua casa de vilarejo aos gatos errantes, aos vagabundos e às criadas grávidas”.
Deu no que deu. Com seus exotismos pessoais, a mordacidade não pequena e o invariável brilho, Colette chegou a escandalizar o então provinciano Hemingway que, no clássico Paris é uma festa, traça dela perfil antológico.
Colette e seus gatos, inúmeros, a escrever deitada, a viver deitada, a sacudir o mundo recostada em seus travesseiros de penas de ganso no concorrido endereço parisiense de Beaujolois. De Gide a Sartre não houve quem a ela não se curvasse, no mais notório beija-mão da história recente de nossa cultura.
Tem razão Julia Kristeva: Colette inventou um alfabeto e este alfabeto se chama mulher.
25|02|2007| O Estado do Paraná
2 respostas a Um gênio feminino