Na minha idade, é impossível falar de golpe de Estado no Brasil e se desvencilhar da memória. Ouço isso desde garoto. Quando comecei a trabalhar no Rio, conheci um repórter veterano chamado Redento Júnior. Ele cobria a Aeronáutica e estava sempre esperando algo: Aragarças, Jacareacanga, movimentos em que um grupo aterrissava na selva amazônica para derrubar o governo.
Era até um pouco romântico. Vi o capitão Lameirão andando pelas ruas de Juiz de Fora, carregava a memória de rebeliões fracassadas. Em 1961, aos 20 anos, no Rio, acompanhei eletrizado o sequestro do transatlântico Santa Maria pelo capitão português Henrique Galvão e pelo general Humberto Delgado. Era uma ação espetacular contra a ditadura salazarista.
Em 1964, cobri com uma dor no coração o golpe que derrubou Goulart. Entrevistei o general Mourão e me vinguei no primeiro parágrafo da matéria: o comandante da marcha militar contra o Rio sofreu um enfarte depois de andar alguns quilômetros em Copacabana.
Quando vejo o depoimento do hacker Walter Delgatti, observo como era correta a presunção de que havia um golpe em curso. Escrevi sobre isso no 8 de Janeiro. Mencionei a senha “festa da Selma” e, para mim, as invasões eram apenas um passo. A expectativa dos invasores era a entrada em cena ds Forças Armadas. O hacker de Araraquara, assim como o ET de Varginha, se entrelaça na minha imaginação. As cidades médias brasileiras não param de nos surpreender.
Por meio de Octavio Guedes, fiquei sabendo da ideia maluca de levar uma urna eletrônica para o palanque, digitar, diante do público, o número de Bolsonaro para aparecer o de Lula. Os adeptos do Mito gritariam: Caramuru. Escrevo assim porque vejo dessa maneira. Mas não significa que subestime os fatos. Tenho afirmado que golpes de Estado fracassados são precisamente os que dão cadeia para seus autores. Em caso de êxito, os democratas é que são presos.
Os dados rocambolescos e a incompetência de golpistas não podem ser usados como atenuantes. O lado mais preocupante de tudo foi a participação de militares. A comissão que investigaria as urnas usou o hacker de Araraquara como consultor. Estamos num momento da História em que as guerras são também cibernéticas. Imagine se fôssemos colhidos numa delas.
Aliás, Bolsonaro conseguiu, de uma certa forma, comprometer o prestígio das Forças Armadas. O episódio das joias, o mais reluzente, acabou envolvendo também um general. Ele aparece no reflexo de uma caixa que continha uma palmeira folheada a ouro. Isso talvez possa ser usado como atenuante . O general é primário: não percebeu sua imagem refletida na tampa da caixa.
Outro dia, dei um depoimento sobre a história do telefone celular. Está numa exposição do Museu do Amanhã. Falei da importância política e do potencial produtivo desse novo instrumento. Não me alonguei sobre o impacto que teve na fotografia. Milhões de pessoas passaram a fotografar, sobretudo a tirar selfies. Festas, encontros, viagens — tudo resulta em selfie. Algumas pessoas morreram fazendo selfie em lugares perigosos.
O general não fez uma selfie. O general fez um id. Na verdade, self, id e superego são categorias da psicanálise. O id é o inconsciente sobre o qual não temos controle. Está sempre nos traindo.
Enfim, sou favorável a que se faça justiça e tudo mais. Mas não estou conseguindo levar a sério todo o tempo o que se passou. É muito tosco. Os golpes de antigamente eram mais bem urdidos ou mesmo mais arrojados. Ou será que o tempo passou tão célere que não percebi que a própria ideia de um golpe é algo fora de lugar, que sempre parecerá ridiculo? Não é exatamente assim. A verdade é que a técnica do golpe de Estado se modernizou, e os golpistas brasileiros ainda não se atualizaram.