Um pouco mais de ‘Última Hora’

Outro dia, falei-lhes de ‘Última Hora’, jornal impresso que fez sucesso nos anos 50/60, modernizou a imprensa brasileira e foi uma das grandes escolas de jornalismo no Brasil. Fiz parte da Edição Paraná e tenho orgulho disso. Hoje, para suavizar um pouco as atuais desgraças nacionais (Bolsonaro, Weintraub e coronavírus), volto ao tema.

‘UH’ era um jornal interessante, que ganha destaque sobretudo nessa época em que a imprensa escrita está sendo substituída pelas versões on-line e pelos sites e blogs de notícias e de opinião. E que as empresas jornalísticas pouco respeito e consideração têm pelos profissionais que as mantêm vivas. Dizem que o sucesso de ‘UH’ se deveu ao apoio dos governos Getúlio, JK e Jango. Bobagem. Houve apoio sim, mas o sucesso se deveu à qualidade do jornal, da direção que o conduzia, do pessoal que o fazia e da aceitação popular.

E isso tudo porque ‘Última Hora’ era um jornal de jornalista. Samuel Wainer, que era o diretor e dono do veículo, era jornalista – um dos melhores da sua geração. Eis o segredo do negócio. Ele sabia escrever e escrevia bem. Sabia também como tocar uma publicação da dimensão de ‘ÚH’, como escolher a equipe e como traçar o percurso. Fez de ‘Última Hora’ o primeiro jornal de dimensões nacionais, sediado do Rio e em São Paulo, mas com edições diárias de Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte, Niterói, Campinas, Bauru, Santos e ABC paulista. Samuel queria um jornal popular, mas moderno e dinâmico, um jornal da cidadania. Ele nascera voltado para a política, mas avançou em todos os setores, do social ao cultural, do artístico ao esportivo e policial. E conquistou o público com um projeto editorial e uma diagramação diferenciados. Além disso, tinha colunistas de prestígio nacional, como Stanislaw Ponte Preta, Antônio Maria, Adalgiza Nery, Vinícius de Moraes, Nelson Rodrigues, Paulo Francis, João Saldanha, Jô Soares, Ricardo Amaral e Arapuã.

Wainer sabia, sobretudo, valorizar os seus comandados. Conhecia as redações e sabia das dificuldades dos jornalistas no desempenho de suas atividades. Pagava bem, muito mais do que os demais veículos do gênero. E era capaz de atitudes no mínimo surpreendentes. No final do ano de 1963, na época do reajuste salarial, concedeu, sem discussão, aumento a seus funcionários. Em Curitiba, no entanto, os demais jornais não concordaram com o pleito da classe. O pessoal entrou em greve. A equipe de ‘Última Hora’, que não tinha mais o que reivindicar, entrou também. Em solidariedade aos colegas. Por ordem da direção. Isso nunca acontecera e jamais acontecerá.

Samuel não era contra as faculdades de jornalismo. Mas nunca deu importância a elas. Era do tempo em que elas não existiam. Certa feita, recebeu em sua sala um candidato a emprego. Trazia um diploma na mão. Wainer encarou o jovem e fez-lhe apenas uma pergunta: “Você quer mesmo ser jornalista?”. E, ante a resposta afirmativa, disse-lhe Samuel: “Então, vá para casa, guarde esse diploma numa gaveta, e volte aqui dentro de 30 dias, sem o diploma”.

A sucursal de Curitiba também teve as suas histórias. Uma delas envolveu o decano Luiz Geraldo Mazza. Depois que deixou o ‘Diário do Paraná’, que ajudara a fundar, foi ser secretário de ‘UH’, edição paranaense. Tinha todos os requisitos necessários a um secretário de redação de então: mau-humor, dor no fígado, hemorroidas, calo e unha encravada. Miguel Salomão, que mais tarde viria a ser secretário do Planejamento de Jaime Lerner no governo do Estado, era correspondente do jornal no litoral. Um dia, veio a Curitiba e trouxe um texto escrito, mas teve receio de entregá-lo pessoalmente ao Mazza. Como o secretário estava ausente no momento, aproveitou para deixar as laudas sobre a mesa dele e desceu do mezanino-redação e ficou batendo papo com o pessoal da expedição, no térreo. Mazza chegou, subiu e assumiu a sua mesa. Lá embaixo, Miguel Salomão prendeu a respiração. No exato momento, ecoou o brado de Luiz Geraldo: “Quem foi que escreveu esta merda?!” Salomão saiu de fino e embarcou no primeiro trem para Paranaguá.

P.S. – Eu sabia que iria esquecer nomes na relação de pessoal de ‘UH’ Paraná que publiquei semanas atrás. Pois esqueci. E gente que não poderia ter sido esquecida, como Ronald Osti Pereira, Nelson Faria, Rafael Munhoz da Rocha e José Augusto Ribeiro. As minhas desculpas aos que ainda estão entre nós. Aos que já se foram, a minha saudade.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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