Sem começo nem fim

Uma nova resposta à velha pergunta ‘Quando começou a bossa nova?’

Uma qualidade a favor do ser humano é que ele é o único animal que faz perguntas. Exemplos: “Quem sou, de onde vim, para onde vou?”; “Deus existe?”; “Há vida depois da morte?”; “Estamos sozinhos no universo?”; e “Por que o espirro vem em pares?”.

Outra pergunta que atazana a humanidade —ou, pelo menos, a mim, que faço parte dela— é: “Quando começou a bossa nova?”. Já me foi feita dezenas de vezes por estudantes, repórteres e ensaístas. No começo, devido à riqueza de opções, eu elaborava a resposta. Mas, ultimamente, fui reduzindo —ou ampliando— o escopo de minha argumentação, de modo a agora responder com convicção: “A bossa nova nunca começou. Ela sempre existiu”.

A prova está no LP “Chega de Saudade”, de João Gilberto, pela Odeon, tido sem discussão como o LP inaugural do gênero e que fez 60 anos de lançamento no dia 8 último. De suas 12 faixas, oito são de Tom Jobim, Newton Mendonça, Carlos Lyra e do próprio João Gilberto, com ou sem parceiros —recém-saídas do piano ou do violão e identificadas, em ritmo, harmonia e letra, com o que se chamaria de “bossa nova”.

Mas as outras quatro eram “Morena Boca de Ouro”, de Ary Barroso, de 1941, “Rosa Morena”, de Dorival Caymmi, de 1942, “Aos Pés da Cruz”, de Zé da Zilda e Marino Pinto, de 1942, e “É Luxo Só”, também de Ary, com Luiz Peixoto, de 1957. Todos, sambas “velhos” —mas sambas “de bossa”, que João Gilberto cantou com total respeito, obedecendo inclusive aos arranjos originais.

Ele voltaria a fazer isso nos discos seguintes com “Doralice”, “Bolinha de Papel”, “A Primeira Vez”, “Samba da Minha Terra” e outros, também sambas “de bossa” dos anos 30 e 40 —de uma bossa, em seu tempo, absolutamente nova. Donde concluo que, ao se originar de si mesma, da grande música de bossa do passado, a bossa nova não precisou ter um começo. E, por isso, também não precisa ter fim.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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