Uma das pensadoras mais importantes do século 20 foi a judia alemã Hannah Arendt, que leio sempre com apreço cada vez maior. Aluna de Martin Heidegger, professor e reitor da Universidade de Fraiburgo e nazista de carteirinha, com ele viveu um grande amor, apesar da contrariedade suscitada no seio da intelectualidade ocidental, tendo em vista o componente pouco compreendido da relação.
No Brasil, a filósofa se tornou conhecida graças ao esforço feito por Celso Lafer por meio de traduções, livros e artigos que escreveu e conferências proferidas sobre a extensa obra da citada autora, assim como nas aulas de filosofia e ciências políticas ministradas na Universidade de S. Paulo (USP), da qual foi professor por muitos anos.
O ilustre pensador brasileiro exerceu também a função de ministro das Relações Exteriores num período do governo Fernando Henrique Cardoso.
Aluno da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos na década de 60 do século passado, Lafer frequentou os cursos dados pela filósofa (a essa altura refugiada na América do Norte), ainda que na época não fosse tão conhecida nos meios acadêmicos como veio a ser mais tarde. O interesse do então estudante pelo pensar político de Hannah Arendt foi tão estimulador que na volta ao Brasil, passou a atuar como autêntico divulgador dessa formulação intelectual em nosso país.
O trajeto percorrido por essa admiração humana e cultural foi descrito por Celso Lafer na versão ampliada de seu livro Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder, lançado em 1979 e agora reeditado em conjunto pelas editoras Paz e Terra e Record, do Rio de Janeiro. Grande parte da reedição está dedicada a apresentar a vida e a obra da pensadora.
A informação encontra-se na edição de maio da revista literária (Quatro cinco um), mais especificamente na resenha assinada por Pedro Duarte sobre o livro de Hannah Arendt: Ação e busca pela felicidade, organizado por Heloísa Starling (Bazar do Tempo), e do já citado livro de Lafer.
O resenhista avisa que o livro do brasileiro é de particular interesse dos especialistas, “mas também é um guia seguro para quem quer se familiarizar com a produção de Arendt, pois os principais temas de sua filosofia estão aí bem apresentados: totalitarismo e antissemitismo; a banalidade do mal; as atividades de labor, trabalho e ação da condição humana; a vida espiritual com pensamento, vontade e juízo; as revoluções e a violência”.
O ex-ministro de FHC também navega com propriedade sobre assuntos de seu interesse pessoal como direitos humanos e intersecções com Octavio Paz, Isaiah Berlin e Norberto Bobbio: “O cuidado ao acompanhar as publicações da autora e seus comentadores, inclusive brasileiros, é evidente e generoso. Combina-se, no livro, com relatos de seu convívio com Arendt”, lembrou.
A brilhante e precoce carreira acadêmica da jovem estudante de Fraiburgo, formada em fenomenologia, campo do saber filosófico em que Heidegger reinava absoluto, orientada na feitura da tese doutoral por Karl Jaspers, foi interrompida bruscamente com a ascensão de Adolf Hitler ao poder supremo na Alemanha, em 1933.
De nacionalidade judaica, Hannah foi duramente perseguida e obrigada a fugir e a trabalhar em organizações sionistas, até finalmente ser recolhida a um campo de refugiados. Ajudada por muitos amigos ainda influentes junto ao governo alemão, teve a felicidade de escapar do fanatismo nazista na direção dos Estados Unidos, país que a acolheu condignamente e no qual “escreveu a maior parte de sua obra e despontou como pensadora original com Origens do totalitarismo (1951)”.
Na obra em questão, a escritora exprimiu com amplo domínio a tese de que tanto o nazismo, com Hitler, e o bolchevismo, com Stalin, “eram regimes igualmente totalitários”. O argumento é confirmado no primeiro ensaio deAção e a busca da felicidade, enfocando a Revolução Húngara: “O imprevisível levante popular contra a opressão soviética era o testemunho da resistência à ideologia e ao terror totalitário. A derrota em nada diminuiria a sua grandeza. Os mortos, o luto e as manifestações atestariam a memória do que nem comunistas nem anticomunistas previam: o levante surpreendente e conjunto pela liberdade e nada mais”.
Na síntese de Hannah Arendt a liberdade é a razão de ser da política, como aconteceu na Revolução Húngara, para ela um movimento que dispensou a organização tradicional dos partidos e tampouco precisou de líderes, ocorrendo como uma “revolução espontânea”, para usar uma expressão de Rosa Luxemburgo.
Um aspecto levantado no livro de Celso Lafer é que para a filósofa “a política não era o mal necessário para evitar a guerra de todos contra todos. Era a possibilidade de felicidade na convivência mundana com os outros”. Mais adiante na leitura da resenha se descobre que na perspectiva de Arendt “nem a tradição que confia no poder central do Estado nem a tradição liberal que aposta na dinâmica do mercado, estão preparadas para corresponder a desafios que a política suscita. Por isso, as duas doutrinas podem ser tolerantes com o autoritarismo”.
Assim como a leitura dos livros de Hannah Arendt é oportuna em qualquer tempo e lugar, hoje mais que em qualquer outro contexto, torna-se obrigatória como bem expressou Pedro Duarte: “Diante da crise que hoje há, no Brasil e no mundo, do princípio da representação institucional, é bom lembrar que há outras formas de governo. […] Não é uma experiência simples nem fácil. Mas atende a exigência de que pensemos e ajamos por nós mesmos. Trata-se de um tema caro a Arendt, desde que cunhara, no começo dos anos 60, o conceito de ‘banalidade do mal’ para designar homens como Adolf Eichmann que, após participarem do nazismo, respondiam às acusações afirmando que estavam cumprindo ordens. Atribuíam a uma instância superior – o chefe, o governo, as leis – a orientação sobre sua conduta, abdicavam de pensar por si e, por extensão, da responsabilidade última por suas ações. Nenhuma ordem ou lei, para Arendt, nos dispensa de pensar nem de agir. Daí sua preferência por uma política mais direta, sem transferência de poder”.
Para os brasileiros que se preparam para escolher o futuro presidente da República, sem esquecer governadores e parlamentares federais e estaduais, conceitos que brotaram de fonte luminosa de ideias políticas nos anos 60 do século passado, quase 60 anos depois estão mais vivos do que nunca.
Pensar e agir sem amarras ou viseiras está na ordem do dia.