Uma sutil elevação

Faço minhas as palavras de Boris Schnaiderman na orelha de A copista de Kafka: é um texto envolvente. Digo mais: fluente. Uma das virtudes que mais valorizo numa obra literária é a capacidade de liquidez do texto junto ao leitor, seu objetivo principal. Para oferecer prazer à leitura um texto deve ser capaz de penetrar – sem atrito – pelos nossos vasos comunicantes. Não se pense por isso tratar-se de um texto fácil. Não é essa a questão – pois até mesmo em Grande Sertão percebe-se esta característica (quase sempre associada ao ritmo).

Romancista experiente, Bueno faz uso de um jargão literário capaz de confirmar sua destreza com a palavra, ao levar a sério a máxima de que as dez primeiras linhas de um livro são fundamentais para se fisgar um leitor. Vejam isso:

Conheci ontem o simpático senhor Franz. Olhou-me demoradamente os pés. Terá notado o defeito que tão insistentemente escondo e dele só dou registro nas páginas deste diário exausto? São grandes, julgo muito grandes os meus pés. Também não aprecio o meu nariz. Acompanha-me o rosto, como me acompanha a boca rasgada e as sobrancelhas proeminentes, mas não aprecio o meu nariz. Pareceu-me um homem encantador, o senhor Franz a noite passada, no apartamento de Brod. Gentil e magro, um perfeito cavalheiro. Guardei dele, com uma intensidade assustada, os olhos – muito negros e, às vezes um pouco alheados. Acho que nasceu ali uma amizade para toda a vida.

Trocando de narrador a cada capítulo, Bueno cria um estranho universo de sensibilidades numa seqüência de histórias espetaculares feitas do cotidiano mais surreal: o gato de cinco patas, o raivoso enjaulado na urna de vidro – e cá estamos de volta ao diário da copista de Franz Kafka. Livro-surpresa, este representa, sem dúvida, um upgrade na obra já consumada do escritor da Vila Tingüi. Assim é também na opinião do caderno especializado Prosa & Verso d´O Globo, que há duas semanas teceu elogios pesados ao livro.

O dream time paranaense – com Tezza, Valêncio Xavier, Pelegrini, Miguel Sanches e Wilson Bueno já merece uma coletânea. Estou esquecendo alguém?

Toninho Vaz, de Santa Teresa

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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