A vida verdadeira, com os gestos e os passos que empurram a história, está lá fora. Aqui é um canto de mundo, onde se amontoam cifrões, Bolsa, PIB, deficit, ajuste fiscal, câmbio, inflação, dólar, euro, tarifa, subvenção, taxa, lucro, ações, comissão, títulos, letras, renda, corrupção. O demais, se existe por teimosia, não interessa.
Com licença, vou ao mundo. Inquieto e, sei bem, para ver o que já vi vezes sem conta. Várias proximidades facilitam o começo pela Venezuela. Que é também o problema mais imediato e mais incandescente. Mas não é muito o que os países sul-americanos podem fazer para evitar o agravamento da situação venezuelana. O primeiro ao seu alcance, aliás, é não vir um deles a agravá-la por intromissão indevida, não importa para que lado.
O risco de deflagração da violência, inclusive armada, está altíssimo na Venezuela. Arrogantes como estão os vitoriosos eleitorais, que começaram por declarar guerra de extermínio ao adversário, até com prazo definido, e transtornados como estão os perdedores, estará na ordem natural das coisas um ato de desatino armado. Neste momento, o ódio obtuso dos líderes vencedores encontra, no outro lado, um líder que parece não perceber a situação do país. Quanto mais os descontroles. Ou então conhece como ninguém os venezuelanos.
O mais estranho é que, de todo o transmitido da Venezuela nesse período mais agudo, ninguém menciona as Forças Armadas. Não pelo próprio Maduro, mas por suas relações com os chefes cubanos, não se pode imaginar que o fator militar, e até de eventual defesa popular armada, estejam esquecidos.
A doutrina militar que os Estados Unidos fizeram aplicar na América Latina considera que confrontos internos, armados ou na iminência de sê-lo, constituem ameaça à segurança nacional, cabendo aos militares intervir e decidi-los. Explica-se: tais confrontos dão-se entre conservadores e reformistas. Hugo Chávez alterou a doutrina para a Venezuela, mas não se sabe se a nova linha perdura ou até quando perduraria. E esta pode ser a questão-chave. Coberta de silêncio, no entanto.
A situação na Venezuela é nova, mas obscura. Aos países latino-americanos justifica-se apenas defender o que seja o mais próximo do legítimo e conveniente para um futuro democrático.
Ou seja, aquilo que os grandes liderados pelos Estados Unidos não defendem, jamais, quando se trata de Arábia Saudita, como de outros aliados seus incursos em transgressões à ONU, a tratados e a princípios do direito internacional. E, em se tratando da Coreia do Norte e sua bomba de hidrogênio, nem é mais a defesa da correção que falta aos Estados Unidos. É a simples utilidade de tentar disfarçar.
Nos dois casos, a igualdade de motivo: a falta de autoridade moral. A ditadura saudita só se permite o primitivismo e as arbitrariedades do seu poder porque conta com apoio dos Estados Unidos, em qualquer circunstância. O seu petróleo vale mais do que todos os princípios de relações humanas ou entre nações. E o cinismo a tudo se sobrepõe: a imprensa e a TV americana tanto propagavam a aliança proveitosa do seu país com a Arábia Saudita, como noticiavam provir da Arábia Saudita o financiamento de Osama Bin Laden que os Estados Unidos combatiam, e que lhes tirara as duas torres novaiorquinas.
A estupidez humana explodiu mais uma vez, agora, na Coreia do Norte, sob a forma de bomba de hidrogênio. Os Estados Unidos deviam saudar seus imitadores comunistas. Porque condições morais para criticá-los, o maior poder armado do mundo não pode ter. Nem Inglaterra, França, Rússia, Israel, China, India, Paquistão, talvez mais.
O mundo é dos cínicos.
Janio de Freitas – Folha de São Paulo