Após quatro anos de um governo que menosprezou o livro, a cultura e que abriu uma guerra contra cientistas e intelectuais do país, Marco Lucchesi sabe que o trabalho que tem pela frente de reconstrução é de proporções inéditas. O poeta e escritor assume a presidência da Biblioteca Nacional, com a ambição de fazer da instituição um pilar no fortalecimento da democracia no país. Em entrevista ao UOL, ele traça sua visão para o que ele acredita ser o “maior tesouro cultural do Brasil”, fala em ampliar a internacionalização da Biblioteca e seu diálogo com a sociedade.
Lucchesi conta que essa é a terceira vez que foi convidado a liderar a instituição. A primeira delas ocorreu ainda no governo de Dilma Rousseff. Naquele momento, ele estava na Romênia e declinou o convite. Michel Temer voltou a convidá-lo. Mas o escritor recusou. “Obviamente”, explicou. Desta vez, o lobby para que ele assumisse veio também de dentro da própria instituição. Com prêmios em todo o mundo, e livros traduzidos para o árabe, romeno, italiano, inglês, francês, alemão, espanhol, persa, russo, turco, polonês, hindi, sueco, húngaro, urdu e latim, Lucchesi não disfarça a emoção que foi receber o telefonema da ministra Margareth Menezes, fazendo o convite para ele assumir a a Biblioteca Nacional.
Sua análise é de que o “bolsonarismo cultural” estava atravessado em todas as instituições e que parte do trabalho hoje exige “despoluir a presença bolsonarista difusa, que é um pacto de renovação da República”. Sétimo ocupante da cadeira nº 15, Lucchesi foi eleito presidente da Academia Brasileira de Letras em 2018 e insiste que escrever é seu “compromisso”. “É meu oxigênio. Sem isso eu morro”, disse.
Durante a gestão de Bolsonaro, um olavista chegou a presidir a instituição. Não por acaso o romancista, memorialista, ensaísta, tradutor e editor que agora assume o cargo conta com orgulho que sua primeira visita ao novo local de trabalho foi marcada por lágrimas e abraços. “Foi um sentimento de que uma era terminou”, contou.
Eis os principais trechos da entrevista: Até que ponto a Biblioteca Nacional foi minada pelo bolsonarismo?
A sorte é que as pessoas lutam e resistem onde é possível lutar e resistir. Eu preciso me aprofundar para saber o que de fato aconteceu no varejo, não no atacado. O que foi bom será mantido. Principalmente o que foi feito a partir da interação com os funcionários da Biblioteca. O Brasil precisa voltar aos horizontes do século 21. Urgentemente.
Qual é a função que o senhor vê para a Biblioteca Nacional? Ela é o maior tesouro do Brasil. É a mais antiga instituição cultural, a maior da América Latina, está entre a oitava e sétima biblioteca no mundo. Ela é um grande observatório, um telescópio. Além disso, é um farol para o Brasil em virtude do depósito legal. Sua função é absorver a produção bibliográfica brasileira, preservar o acervo e ser um ponto de referência para o Brasil e o mundo. Em tempos de fake news, ela da um certificado importante na produção de metadados sobre os itens do acervo.
De que forma ela pode ajudar na reconstrução da democracia? Primeiro, ela volta a faz parte do Ministério da Cultura, que tinha sido assassinado.
Talvez um dos maiores crimes da era Bolsonaro. Com a nova pasta, já demos um passo. Do ponto de vista da Biblioteca Nacional, é torna-la republicana. Resgatar sua profundidade republicana. Ela precisa trabalhar como um espelho.
Como trabalhar para reconstruir a democracia? Ampliando a hemeroteca digital, dando ênfase à Biblioteca digital. De outro, trabalhar com outras partes do Ministério da Cultura em relação ao livro e leitura. Ampliar e buscar documentos obras brasileiros e obras raras que se encontram no exterior. Isso sempre foi feito. Mas vamos redobrar esforço. Pretendemos internacionalizar muito a Biblioteca Nacional, no eixo Sul-Sul e para novas geografias. Vamos abrir o diálogo com muitas bibliotecas pelo mundo.
Por qual motivo a cultura é vista como um elemento tão ameaçador para líderes autoritários? Bolsonaro disse que, se ele saísse, o livro iria ocupar o estande do tiro. Isso é tao estapafúrdio.
Mas a realidade é que a cultura é o último bastião da democracia. O ataque, portanto, era frontal. Em vários períodos da história, vemos um sequestro da cultura. Não há problema em alguém ser conservador. Havia, em certas situações na história. O drama consiste na difusão de valores fascistas, de elementos pré-copernicanos. Atacaram as universidades, a ciência, a educação. Não ouvi nenhum intelectual orgânico de direita se opondo a Bolsonaro. Croce, na Itália se opôs com rigor ao extremismo.
E quem assumiu então essa função nesse movimento no Brasil? A histeria de certos pastores e grupos militares.
Essa foi nossa grande desgraça e o ataque direto contra a cultura. Houve uma apologia ao fascismo em nosso país. Domenico De Masi tem razão quando ele fala que não estávamos preparados para explicar que a Terra não era plana, que a ciência é importante. Fico muito irritado com grupos cristãos ultraconservadores. O que vimos foi uma absoluta relação com a barbárie e essa aliança do ressentimento e da fome de poder. É muito cristão colocar uma bomba em Brasília no período de Natal.
Em vários setores o novo governo terá sérias dificuldades orçamentárias. Isso preocupa no que se refere à Biblioteca Nacional?
Ninguém sai do bolsonarismo como se tivéssemos dado um passeio. Saímos todos machucados. Buscando soluções de salva-vidas. Ficamos ilhados, vivemos a pandemia, ameaça de golpe, instituições enfraquecidas. O rastro de pólvora terrorista do bolsonarismo deixou marcas, não só nos prédios de Brasília. Bolsonaro é o fruto. O idiota perfeito, com uma monstruosidade enorme que a humanidade produz de tempos em tempos. Mas ele não é a razão fundamental. Portanto, precisamos primeiro despoluir a presença bolsonarista difusa, que é um impacto importante para a renovação da República.
Nós temos o Ministério da Cultura e não é pouco. Temos uma ministra que é uma artista e uma equipe motivada. Eu tinha dificuldade para dialogar, quando presidia a ABL. Agora, temos a recomposição republicana da interlocução. Bolsonaro tornou o país um Brasil intransitivo. Estamos vendo o maior aporte que a pasta já teve. E essa é uma grande resposta. Vamos dialogar com Caixa, Finep e CNPq, Banco do Brasil e BNDES, sem o delírio paranoico da guerra cultural. Tudo é difícil. Bolsonaro e suas forças nos levaram ao abismo. Mas não caímos. Agora é reconstruir. Mas é o momento de calma e esperança. Sabemos que os desafios não são pequenos. Mas sairemos dessa. Como disse Hölderlin, onde houver perigo cresce também o socorro