Vale o que está escrito

Ando naquela fase da vida em que a memória pretérita vem com facilidade, ao passo que coisas acontecidas há poucos dias (ou horas), você martela o bestunto e não consegue lembrar.

 Bem, isso é para dizer que li há algum tempo que alguém passara os melhores dias da vida percorrendo sebos. Já não sei onde deparei com a declaração, quem a escreveu e, pior, a quem se referia. Contudo, considero o lance genial, pois modestamente me incluo no rol dos assíduos frequentadores de livrarias e sebos, esses, hoje transformados (seria uma imposição do mercado?) em locais de venda de pontas de estoque. Na verdade, uma vantagem econômica para os leitores que têm acesso a lançamentos razoavelmente recentes, comercializados não raras vezes até por um terço do preço de catálogo.

Foi numa dessas costumeiras incursões a um pequeno sebo próximo ao prédio histórico da Universidade Federal do Paraná, na praça Santos Andrade, que topei num canto de prateleira como um achado de grande valor cultural. A comparação é piegas, mas me senti um arqueólogo que descobre um vaso de cerâmica intato em meio a miríades de cacos e fragmentos.

Estava lá, a salvo de outros olhares perspicazes e a minha espera pela bagatela de dez reais, o primeiro volume do Livro de cabeceira do homem, lançado pela Editora Civilização Brasileira em 1966, portanto, há quase 50 anos.

Nessa época brilhante a editora era dirigida por Ênio Silveira, arguto editor e tradutor, que acima de tudo teve o discernimento de recrutar intelectuais de vanguarda para trabalhar na casa, dentre os quais o poeta Mário Silva Brito e o grande produtor e capista Eugênio Hirsh.

Um dos diletos amigos da turma (não sei se chegou a trabalhar lá) foi o jornalista Paulo Francis, que além de sugerir a publicação de vários livros importantes nas áreas da política, história e filosofia, teve seus primeiros romances (Cabeça de negro e Cabeça de papel) publicados pelo disputado selo da Civilização Brasileira, cujo catálogo de ficção ostentava Joyce, Sartre, Faulkner, Hemingway, Fitzgerald, Steinbeck, Orwell, Greene, Nabokov e tantos outros. O romance O advogado do diabo, de Morris West, quando lançado, chegou a vender um livro por minuto durante seis meses.

Ênio confiou no talento de autores nacionais e abriu a magnífica coleção Vera Cruz com Encontro marcado, de Fernando Sabino, abrindo espaço também para Lúcio Cardoso, J. J. Veiga, Adonias Filho e Paulo Mendes Campos, para citar uns poucos.

Francis era tão chegado que lhe solicitaram o texto de apresentação para as orelhas do volume inaugural do Livro de cabeceira e não se fez de rogado: “Este livro é o do homem. Tem adultério, caçada na África, músicas, rosas, cachimbos e, naturalmente, muito sexo. Todos os colaboradores são personalidades que prescindem de biografia, pois certamente conhecidos, aprovados ou contestados pelos leitores da Civilização Brasileira. Mas têm em comum inteligência, sofisticação e talento, que é o que nos interessa e, acreditamos, interessará ao senhor”. A editora lançaria também uma publicação similar destinada às mulheres.

E sabem a quem Francis se referia? A ninguém menos que Carlos Heitor Cony, Glauber Rocha, Mário Silva Brito, Norman Mailer, Aldous Huxley, Franklin de Oliveira, Ingmar Bergman, Otto Maria Carpeaux e Gay Talese, autores dos ensaios, contos, novelas e aforismos selecionados para a primeira edição. A série, infelizmente teve vida curta, pois as posições políticas então defendidas por Ênio e a profusão de livros ditos de esquerda lançados pela casa, como as obras de Marx e Antonio Gramsci então abominadas pelos gorilas que empalmaram o golpe de dois anos antes, avolumaram as dificuldades econômicas com seguidas apreensões e proibição de livros.

Os desaforismos assim chamados pelo próprio autor, Mário Silva Brito, mais tarde reunidos em volume exclusivo da mesma editora, ilustrados por Jaguar para o Homem, propiciam momentos de finíssimo humor e muita reflexão. Alguns poucos exemplos: “Certos escritores deviam ser punidos por exercício ilegal da literatura”. Ou “é um tipo que cobiça, invariavelmente, a mulher mais próxima”. Ainda, “prefiro jurar por Deus a jurar por mim. Não invoco o meu honesto nome em vão”. E encerrando a seção: “Revelação de Mariana: comecei a dar porque precisava exibir umas calcinhas tão excitantes que comprei!”.

Prosseguindo a leitura ao léu, recolho uma amostra segura do que hoje seria considerado politicamente incorreto. Está no conto de Cony (Babilônia! Babilônia!), um diálogo entre amigos: “Nada disso. Essa questão de mulher magra foi uma impostura dos costureiros, dos modistas. São, em geral, pederastas. Odeiam a mulher. Querem os homens todos para eles e o melhor modo de eliminar a concorrência é obrigar a mulher a ficar ossuda, sem carnes. As idiotas vão atrás dessas idéias e fazem regime, ficam com as pernas que parecem palitos, uma tábua. Não é à toa que os pederastas terminam levando vantagens”. Pobre Cony! Hoje seria irremediavelmente processado…

Glauber Rocha, no ensaio sobre sexo no cinema, lido cinco décadas depois torna absolutamente premonitória a justíssima homenagem a Norma Benguel, falecida por esses dias. Depois de comentar o tema desde as divas de Hollywood, Jean Harlow, Bete Davis, Joan Crawford, Pola Negri e Greta Garbo, que mal mostravam os cotovelos, passando por Bardot, Loren, Mangano e Monica Vitti – que exibiram todo o resto –, Glauber chega “finalmente em nossa terra, pátria de Nelson Rodrigues, (na qual) o símbolo máximo do macho é Jece Valadão. E nossa boneca na praça é Norma Benguel, que já foi consagrada nua por Ruy Guerra em Os cafajestes e circulou na Itália em papeis relativos”.

O grande baiano escreveria, entretanto, que “o mito sexual cinematográfico da mulher brasileira será definitivamente fundado por Nelson Pereira dos Santos em seu último filme Como era gostoso o meu francês, cujo final é sensacional: a índia come o francês, mastigando sua carne e chupando seus ossos com uma pureza angelical”.

 O romancista Norman Mailer, na extensa entrevista originalmente publicada em Cartas abertas ao presidente, também lançado pela Civilização, entre muitas outras coisas, disse: “Lênin não era mau sujeito. Trotsky também não era. Não creio que Napoleão o fosse. Não creio que Alexandre, o Grande, tivesse sido. Os maus sujeitos tornam-se líderes em tempos ruins. Um homem como Danton começa como grande homem e deteriora. Castro talvez acabe mal, se bem que isso venha a ser uma tragédia. Ninguém vai dizer-me que ele, quando começou, não era um grande homem”.

Concluo com uns poucos trechos do texto de Gay Talese, um dos inventores do new journalism, que passava semanas inteiras acompanhando o entrevistado para então escrever a reportagem. Essa era sobre Frank Sinatra: “As duas louras, que pareciam ter uns trinta e tantos anos, eram requintadas e elegantes, seus corpos maduros suavemente moldados em vestidos escuros. Estavam sentadas, de pernas cruzadas, nos bancos altos do bar, ouvindo a música. Uma delas apanhou um cigarro e imediatamente Sinatra aproximou seu isqueiro de ouro e ela segurou-lhe a mão, olhou para seus dedos; eram nodosos e descarnados, as juntas protuberantes e tão endurecidas pelo artritismo que ele mal as podia dobrar”.

“Diziam os amigos de Sinatra que quando ele tem um romance com uma mulher, nunca sabe se ela o quer pelo que ele possa fazer por ela no momento – ou no futuro. Com Ava Gardner era diferente. Não podia fazer nada mais tarde por ela. Ava estava no apogeu. Se Sinatra aprendeu alguma coisa com a experiência, possivelmente deve ter aprendido que quando um homem altivo está por baixo, uma mulher não o pode ajudar. Especialmente se a mulher está no seu apogeu”. “Frank Sinatra parou o carro. A luz estava vermelha. Pedestres passaram rapidamente pela frente de seu para-brisa, mas como de costume, alguém não atravessou. Era uma moça de uns vinte anos. Ficou parada no meio-fio, de olhos pregados nele. Do canto do olho esquerdo, ele a podia ver e sabia, porque isso lhe acontece quase todos os dias, o que a moça estava pensando – parece com ele, mas será mesmo? No momento em que a luz ia passar a verde, Sinatra voltou-se para ela, olhou-a direto nos olhos, esperando pela reação que sabia que viria. Veio e ele sorriu. Ela sorriu, e ele se foi”.

 É por essas e outras que entendemos melhor o que sempre se imprimia na quarta capa de cada livro: “Mais um lançamento de categoria da Civilização Brasileira”. Poucos slogans sugeridos pelo marketing (que só se tornaria conhecido décadas mais tarde) foram tão fieis ao produto entregue aos leitores.

(Este artigo foi publicado neste blog em meados de novembro de 2013 e é dedicado a quem, como este escrevinhador, está saturado de ouvir falar em Dilma Rousseff, Michel Temer, Lula, Renan Calheiros, Eduardo Cunha e outros do mesmo teor de nulidade).

ivan schmidtBlog do Zé Beto

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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