Obra de Kirill Serebrennikov recria a vida dos jovens roqueiros de São Petersburgo e formata um niilismo de fim de século
Assisti com atraso a “Verão”, filme de 2018 do cineasta russo Kirill Serebrennikov, sobre a insurgência das bandas de rock do início da década de 1980, na União Soviética de Brejnev.
Os protagonistas são personagens reais, Mayk Naumenko, da banda Zoopark, e Viktor Tsoi, do grupo Kino. Mortos no início dos anos 1990, antes de completarem 40 anos, eles partiram sem conhecer a perestroika.
Filmado em preto e branco, “Verão” recria de forma lírica a vida dos jovens roqueiros de São Petersburgo, que contrabandeavam LPs de Lou Reed, de Bowie, de Led Zeppelin e dos Stones, enquanto driblavam a censura. O filme mescla, com graça, o cotidiano da moçada russa underground, com clipes de canções de Iggy Pop e Talking Heads.
Acusado de desviar dinheiro público, Serebrennikov editou o filme na prisão. Selecionado para a competição em Cannes, “Verão” foi ignorado pelo júri. Fosse exibido agora, em meio ao retorno impensável das tensões da Guerra Fria, talvez tivesse merecido maior atenção.
Trata-se de uma obra de juventude, que me despertou uma baita de uma nostalgia. É impossível assistir sem pensar no BRock, até pelo fato de Naumenko lembrar demais o Frejat e Tsoi ter algo de Paulo Miklos.
Minha geração sofreu de complexo de inferioridade, frente à grandeza da MPB. Da tropicália aos Mutantes, tudo de divino e maravilhoso ficara para trás e, aos recém-chegados ao baile, restava apenas ouvir os velhos vinis arranhados dos pais. No estertor da ditadura, vivíamos condenados ao marasmo de um país deprimido, isolado, autoritário e falido.
Cazuza, Renato Russo, Arnaldo Antunes, Herbert Vianna e outros tantos vieram nos livrar da humilhação. Por fim, possuíamos poetas para chamar de nossos. E o que começou como brincadeira ginasiana terminou como um sólido movimento cultural.
Assim como para os heróis de “Verão”, o rock dos anos 1980 deu forma ao niilismo de fim de século, que nos diferenciava das gerações anteriores. Legião, Ultraje, Paralamas e Titãs eram a versão nacional do espírito daquele tempo, dividindo o espaço das rádios com Blondie, Police, The Cure e Prince. O BRock nos proporcionou, pela primeira vez, a sensação de pertencimento.
Hoje, vivo a dúvida de saber se fui eu que envelheci ou se foi a cultura que sucumbiu à pecha de mama-tetas e ao imperativo tecnológico das bolhas de likes. Talvez a branquitude tenha me tornado obsoleta e as grandes revoluções da arte estejam acontecendo longe do meu quintal.
De qualquer forma, a ideia do artista como agente transformador perdeu a antiga potência, e não só no Brasil. Num mundo de convicções inabaláveis, armado pelo moralismo fundamentalista de um lado e pelo cancelamento do outro, sobrou pouco espaço para a subjetividade. Às vezes, chego a crer que a mobilidade de opinião e gosto não é mais possível.
Aos poucos, passei a me contentar em falar com a fatia cada vez mais estreita dos que me cabem. E toda vez que me procuravam para assinar um manifesto, gravar um protesto ou mover uma ação, eu perguntava se algum banco, jurista, médico, cientista ou empresário de peso estaria envolvido na iniciativa, temente de que um movimento movido por artistas comprometesse a causa.
Um mês atrás, Paula Lavigne me chamou para participar do ato contrário à PEC do veneno, que aconteceu em Brasília, no dia 9 de março. Passei um tempo no vai não vai e acabei não indo. Não sou de enfrentamentos e a animosidade de Brasília para com os artistas me causa tanto angústia quanto engulho.
Paula tem temperamento aguerrido e, à frente do 342, entre outras conquistas, ajudou a salvar biomas, apoiou os sem-teto, levantou recursos para os profissionais do setor, antes e durante a pandemia, e se empenhou na defesa do direito autoral, discutindo as leis que regem a internet.
Quando vi Caetano Veloso discursando diante de Arthur Lira, me arrependi de não ter pegado o avião. Caetano me pareceu vivo, hoje, agora, se recusando, como eu fiz, a aceitar a visão que se impôs à arte. À frente daquele palco armado no gramado da praça dos Três Poderes, ele deu o seu não ao garimpo artesanal, aos pesticidas proibidos e ao extrativismo predatório.
Não sei se o Congresso irá ignorar o ato, é provável que sim. No dia seguinte, Lira abriu a discussão sobre a mineração em terras indígenas, obsessão doentia do horror que nos rege.
Na Ucrânia invadida pelo país de “Verão”, coube a um ator resistir à ofensiva. Aqui, num Brasil que volta a flertar com o autoritarismo, Caetano, ao lado de Emicida, Seu Jorge, Nando Reis e outras feras, vem reafirmar a força e a empatia de um cantor popular.
Outros ventos começam a soprar.