Minha amiga, mãe de adolescente, me contou que existe uma rede social em que podemos ter vidas normais e reais. Ufa! Finalmente vou sair da minha pose olhando o horizonte com bunda empinada dentro de uma piscina de fundo infinito, com filtro Rio de Janeiro e a música do Harry Styles. Eu estava nessa posição desde 2011, quando entrei no Instagram. Imaginem a minha lordose, o meu cabelo embebido em 12 anos de cloro, o dinheiro de uma vida gasto em protetor solar e as pontas enrugadas de meus dedos.
Mais de uma década trabalhando num laptop sobre uma boia de cisne, tentando fazer reuniões importantes enquanto a música “Watermelon Sugar” toca muito alto, fazendo de conta que não enjoei de comer 7.000 vezes a mesma porçãozinha de lula à dorê, dormindo congelada (e, no inverno, literalmente) nesse frame de quem faz força para alçar a bunda às estrelas, com a barriga sendo chupada pra dentro, um olhar de guerreiro rumo ao alto de uma montanha ensolarada e um leve sorrisinho libidinoso vingativo espiritual blasé meditativo mundano.
Como os hipsters paulistanos puderam ficar tanto tempo vivendo em apenas dez fotos? Fim de tarde no Minhocão sentado na muretinha baixa que divide as pistas; foto em casa sem camisa com livro na mão “pras minas do Bumble que entrarem aqui verem que sou meio intelectual meio gostoso”; a mão do bebê encontra a mão da bisa; “olha eu muito vadia no Carnaval abraçada com alguém que conhece alguém do PSOL, mas tudo bem, amanhã posto uma roupa meio ‘oi tô fazendo a galerista’ pra equilibrar”; “eu com minha melhor amiga almoçando no Le Jazz depois de 89 fotos em que ficamos feias e agora conseguimos esta porque fizemos um queixo tão arrogante que a bochecha não ficou com cara de buldogue”; “olha minha camisa de linho escandalosamente amassada e caríssima e meu risotinho caseiro pra poucos amigos porque depois de tanta terapia eu posso ser apenas do meu jeitinho”; “posição de ioga em que parece que meu pescoço sai do meu ânus e um braço nasce desse encontro”; “esse dia na cachoeira foi foda”; abraçada com o Suplicy e recebendo o publi da feira orgânica com cabelo preso num coque bagunçado.
Nessa rede nova, em algum momento aleatório do dia a pessoa recebe uma espécie de “alerta de post” e precisa publicar uma foto, sem ter se preparado para tal. Sem ir de encontro às ondas do mar de mão dada com a pessoa que vai tirar a foto, sem casa de amigo branco fofo que decorou a sala inteira com arte indígena e preta, sem nem ao menos um Detran pra fazer a linha “eu também tenho momentos ruins na minha rotininha”.
Imagino toda essa galera sedenta pra usar o BeReal, contando as horas pra postar uma foto de corrimento na calcinha: “Não tem cheiro, não tem cor, a ginecologista afirma que toda vagina saudável tem uma secreção natural”. Ou ainda o acadêmico midiático ávido por debater o seu cocô cabrito: “Dividindo minhas secas e muitas esferas fecais matinais com o mundo”.
Isso me lembra uma crônica que escrevi há séculos –e que me fez ser xingada pacas– sobre partos humanizados que eram filmados e devidamente televisionados no Facebook. Essa moda deve ter durado poucas semanas, graças a Deus, mas foi intensa. Era abrir o Facebook e se dar conta da esquizofrenia xânica. Eu não entendia o conceito de um parto humanizado com a luz de um iPhone superbem centralizado na piscininha de plástico infantil cheia de sangue pra que a galera das redes sociais não perdesse nem um segundinho daquele momento muito íntimo, particular e sem tecnologia.
Uma sociedade que precisa de uma rede social pra lembrar que pode existir sem uma rede social é uma sociedade ridícula? Não sei, vou esperar o alerta do BeReal pra fazer uma selfie real pensando nisso e só então entender se meu semblante de fato tem algo a me dizer sobre a realidade ou se estou apenas velha.