Antigo menino – 2007


No final de semana dedicado a pesquisar, entre papéis velhos, algum material para a biografia que, sobre este vosso mínimo escriba, trabalha a jornalista Paola de Orte, me escapa da pasta amarrada por encardido barbante uma foto. Gira no ar, indiscernível, e indiscernível cai sobre o tapete do escritório.Apresso-me em catá-la do chão. Velha foto de margens rendilhadas, tão antiga quanto este quase vetusto locutor que vos fala. E lá estou eu – sete, oito anos talvez, abraçado a um risonho Papai Noel em frente ao Prosdócimo da Pça. Tiradentes.

O detalhe hilário é que também escancaro, sem o menor pudor, um sorriso banguela de quem acaba de perder os dentes-de-leite frontais.Me chama atenção ali um raio de sol, oblíquo, de longínqua tarde curitibana, de meados dos cinqüenta, tão absolutamente fixado à foto, e à vida, que parece só uma luminiscência que a memória retraz com as tintas da saudade e da melancolia. Em que escaninho do tempo ficou para sempre perdida a risada do menino, o menino, o velho Noel, as lojas Prosdócimo, a esquina de Tiradentes com Cruz Machado?

Poderia ser mais simples, mas não é. Está ali (ouviu, Paola de Orte?), o “moleque” egresso do sertão e já quase “piá” curitibano; está ali o aluno recém-alfabetizado por dona Chiquita Ghignone na escola primária da Federação Espírita, então comandada pelo saudoso “seo” Abib; está ali o guri de paletozinho herdado do primo que cresceu antes, as pontas do colarinho da camisa rígidas sobre a lapela, impávido colosso…Se o menino é o pai do homem, sobram-me os olhos. Só eles identifico nas fotos de hoje que andam por aí, éditas ou inéditas. Ainda assim com um detalhe essencial – os olhos de ontem olham por mim o mágico e o encantado, o fascínio das coisas adultas e grandiloqüentes. Como o trambolho de tirar fotografia cuja sombra projeta-se na calçada.Sou apenas um menino do interior, migrado das terras onde a cultura do café iniciava então a sua decadência, expulsando proletas de toda espécie à capital do Estado que aqui enchiam as pensões vizinhas à velha ferroviária da Pça. Eufrázio Correia. Impossível esquecer esse “intermezzo” entre Jaguapitã e o sonho vão acalentado pelo pai – de “enricar” na Capital. Tão fria! Tão gelada!Em meu único livro de poemas, uma reunião de tankas chamada Pequeno Tratado de Brinquedos (Iluminuras, 2003), tento o resumo da ópera: “Em cinqüenta e cinco/chegamos à ferroviária/ as malas e os filhos/ante o súbito pinheiro/primeiro pasmo do exílio”.

Alguns anos depois é que eu conheceria as tertúlias do Centro de Letras do Paraná, com a poetisa Josete Shwölke, a recitar, gordota e de tailleur esmeralda, ricos sonetos onde o pinheiro é sempre uma taça contra o azul dos outonos de Curitiba.Quantas tardes até esta em que, ímã do Tempo, no escritorinho do Boa Vista, a foto antiga rodopia e cai, como rodopia e cai, sem alarde, a velha folha de uma árvore?

Wilson Bueno [14/10/2007] O Estado do Paraná.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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