Crivella, Doria e a arte de mobilizar por meio do pânico moral

Na semana passada, tivemos dois lances importantes no xadrez político nacional, com a curiosa peculiaridade de que se tratavam de dois movimentos que tinham como propósito a imposição, pública e de forma teatral, da agenda conservadora. No centro do espaço cênico, puseram-se dois chefes do Executivo da tríade conservadora do Sudeste: Crivella, da cidade do Rio de Janeiro, e Doria, do Estado de São Paulo. No espetáculo de Crivella teve declaração pública do prefeito em vídeo divulgado online, alegando que precisava proteger as crianças cariocas dos violadores da inocência infantil, teve funcionários da prefeitura invadindo uma feira de livros à caça de publicações com exibição de sexo para crianças, teve youtuber produzindo um contra-espetáculo de resistência e reafirmação dos valores liberais, teve desembargador autorizando a censura de impressos por conta de um mero beijo gay que o magistrado decidiu que era o equivalente à pornografia, teve um enorme repúdio público, registrado em mídias digitais e na mídia tradicional, contra a brutalidade antidemocrática do prefeito e do desembargador, e teve, por fim, sentenças proferidas por dois juízes da Suprema Corte brasileira que, finalmente, resolveram acabar com o número circense e reafirmar que ainda temos uma constituição democrático-liberal a mandar nas nossas vidas e que, por enquanto, não vivemos sob a sharia ou algum código teocrático medieval.

O Show de Doria foi menos espetacular, mas igualmente feito para encher os olhos e dar o que falar. O governador determinou que fossem recolhidas apostilas usadas por alunos de ciências do 8º ano da rede estadual de São Paulo. A razão apresentada, esotérica para os não entendidos do dialeto ultraconservador bolsonarista, diz que “Não concordamos e nem aceitamos apologia à ideologia de gênero”. O objeto da censura era uma página em que se explicava aos adolescentes as diferenças conceituais entre sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual. O que Doria decretou, do alto da sua sabedoria, ser “um erro inaceitável”.

Como chegamos a isso?

A história começa quando a extrema-direita pressente que a “terra arrasada” na política nacional, resultante do impeachment de Dilma Rousseff e da operação Lava Jato, não havia deixado intacto nada que pudesse ser proveitoso para que as forças políticas tradicionais se recuperassem em tempo de disputar as eleições de 2018. E resolve, então, apostar em forças sociais que ainda não tinham sido transformadas em forças política e eleitorais suficientemente robustas para conquistar o centro do poder nacional. Os conservadores eram esta força social de reserva, disponível e pronta para ser ativada eleitoralmente se fossem encontrados e acionados os gatilhos certos. Afinal, havia um contingente expressivo de evangélicos conservadores, crescendo ano após ano de modo consistente e acelerado, em todo o espaço urbano brasileiro. Sem falar em setores da classe média tradicional, que naturalmente tendem ao conservadorismo moral, mesmo quando a razão para isso não deriva de crença religiosa. Faltava, portanto, apenas o combustível. E o que poderia mobilizar os conservadores a não ser a transformação das suas preocupações morais em um problema político e eleitoral?

Todo conservador é, por definição, um pessimista com relação à natureza humana e ao que as pessoas farão com a sua liberdade. Para ele, as pessoas tendem ao mal. Se incentivadas, adotarão o pecado. Se não forem impedidas de vê-lo, optarão pelo vício. Se não forem fortemente reprimidas e constantemente vigiadas, entregar-se-ão à lascívia. Só censura, punição, controle e humilhação evita que as pessoas se encaminhem para o erro. O mal, naturalmente, se define para um conservador por contraste com os valores adotados pelo seu sistema de referência: a sua tribo, a sua comunidade, seita ou facção.

E foi assim que, em 2018, a turma que, estimulada pelo lavajatismo, elegeu a corrupção política como uma das emergências nacionais, convergiu na outra multidão, que decidiu que a corrupção moral da sociedade era o principal problema do país. O punitivismo político e o conservadorismo nos costumes foram devidamente manipulados politicamente para transformar indignação moral em voto, repulsa ao mal em sufrágio.

O que Crivella, Doria, Witzel, Bolsonaro e companhia fazem desde então é soprar as brasas do conservadorismo, de tempos em tempos, para manter o fogo aceso. Uma vez que os conservadores aceitaram a narrativa de que estão sitiados por liberais, assediados por progressistas e cercados por hostes esquerdistas, homossexuais, feministas e ateias por todos os lados, um inimigo está identificado e basta mostrá-lo à turba para que a fúria desperte e se converta em mobilização. Por isso mesmo, é forçoso repetir constantemente o estímulo, para mostrar que é imprescindível estar vigilante e forte, uma vez que o mal não cessa nem diminui e está sempre aprontando das suas.

Mas, e se não estiver acontecendo nada? Não tem problema. Os que baseiam a sua estratégia política na mobilização permanente do eleitorado conservador nunca viram na ausência de dados e fatos um obstáculo ao próprio sucesso. Não foi para isso que inventaram as fake news, as informações forjadas, distribuídas em abundância pelas mídias sociais? Doria, Crivella e Bolsonaro são manipuladores do público conservador, e para convertê-lo em massa eleitoral não hesitam em mentir conscientemente, fabricar correlações estúpidas e absurdas, nem em adulterar fatos para provocar o pânico moral. Crivella não precisava mentir para seu público dizendo que a revista em quadrinhos tinha pornografia homossexual quando sabia que se tratava apenas de um beijo gay, desses de novela. Doria não tinha que enganar as pessoas dizendo que uma aula de ciência da sexualidade pretendia induzir crianças à homossexualidade. Precisar, não precisavam, mas eles têm certeza de que conservadores só se mobilizam por meio do pavor moral, de forma que se o único meio disponível para esse fim for recorrer a maquinações e distorções de fatos, pois bem, que assim seja.

WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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