Título original: Wild Man Blues. Realização, Barbara Kopple. Elenco: Woody Allen, Letty Aronson e Soon-Yi Previn. Editora: Clap Filmes. O público que vai assistir aos concertos da banda de Dixieland de que Woody Allen faz parte (excepção feita para uma elite italiana que suporta o frete de ver o espectáculo patrocinado por uma empresa de telecomunicações), vai para ver o cineasta de enorme fama na Europa mas descobre depois um clarinetista – e uma banda – com um talento fiel à origem da música que tocam.
Este documentário descobriu para si a mesma personalidade desse público que filma de tempos a tempos: começa por pensar em focar-se na figura pública, nas neuroses que carrega consigo e no estado da relação com Soon-Yi Previn, mas acaba por descobrir que a música é o tema que supera a importância desses outros no filme. Não que este não seja um guia de viagens neurótico, de um homem habituado a viver no sossego e no anonimato e que tem de enfrentar multidões que o querem saudar.
Os seus queixumes aliam-se ao humor com que enfrenta todas as situações, seja a natação matinal ou os encontros com os vários presidentes de câmara que não viram nenhum dos seus filmes, com um humor muito eficaz para aproximar a digressão de Woody Allen de um dos seus próprios filmes à espera de ser lapidado. Até ao fim da viagem, Woody Allen não deixa de ser uma personagem real que poderia ter escrito. O final de viagem é um regresso a casa dos pais e parece, em parte, uma sessão de revelação ao mundo da origem dos seus complexos que, assim, o justifique – o fim do escândalo gerado pela relação Soon-Yi Previn era ainda recente na altura.
Woody Allen atiça a família com uma série de perguntas que soam a culpabilização mas, mesmo assim, o final tem um tom intimista mas impúdico – nem um homem a caminho dos sessenta anos se deve permitir abrir o flanco ao que os pais têm a dizer – que alguns dos seus melhores diálogos costumam revelar. A viagem dá algum material aos obsessivos para confirmarem que as relações e a vida do realizador são como as que foram imaginando a partir dos seus filmes, mas a evidência muito mais importante é que Woody Allen é um Músico – e, na sua mente, certamente que se assume mais como Músico do que como Realizador ou Escritor.
Poderá não ser um clarinetista brilhante, mas é dedicado e um conhecedor das qualidades dos instrumentos à disposição e das necessidades que tem como executante. Não sendo o líder da banda, não deixa de dar um contributo para a sequência de músicas a serem tocadas, de forma a testar os limites de aceitação da audiência para a música “em estado bruto” que vem mostrar à Europa. A sua defesa de um estilo musical que a própria memória americana tem negligenciado acaba por fazer sentido no que lhe conhecemos da personalidade, mas é também uma prova de dedicação. Claro que o mais espantoso será mesmo vê-lo a ceder ao som, batendo o pé de tal maneira que o seu corpo franzino se agita como um todo ao ritmo da (boa) música que toca de olhos fechados para o mundo à sua volta.
Wild Man Blues mostra com clareza que Woody Allen não evitou a cerimónia dos Oscares onde iria receber uma estatueta apenas por capricho, mas porque a sua banda lhe é mais importante do que os seus filmes que trata com algum desprendimento. Talvez isso mude conforme os humores de Woody Allen, mas nota-se na sua recusa em assumir protagonismo em palco que a música lhe é extremamente importante.