Zambelli perde as armas, mas não o discurso. O desafio ainda é imenso

Na véspera das eleições, em 29 de outubro, a deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) sacou uma pistola 9mm e perseguiu um eleitor desarmado após uma discussão em uma rua dos Jardins, em São Paulo. As cenas da violência contra um homem que não representava qualquer perigo correram o país. Zambelli tinha porte de arma, mas não para aquela usada na agressão. Como Al Capone, esse detalhe é o que pode render a ela uma dor de cabeça em forma de processo criminal.

Em dezembro, o Supremo Tribunal Federal determinou a retirada do porte de armas da parlamentar e deu a ela 48 horas para entregar os equipamentos à Polícia Federal. Um segurança de Zambelli que disparou um tiro na ocasião já havia sido preso. Na última terça-feira (3), após consulta ao sistema de registros, a PF apreendeu outras três armas da deputada, a pedido da Procuradoria-Geral da República. Em endereços distintos (em São Paulo e em seuapartamento funcional em Brasília), os agentes encontraram um revólver calibre 0.38 e duas pistolas, de 9mm e de 0.380.

Após o recolhimento, chamou a atenção a manifestação da parlamentar. Em nota, ela disse se autodeclarou uma “cidadã de bem que nunca teve passagem pela polícia”, e que o STF não demonstra a mesma preocupação em relação a “armamentos pesados nas comunidades”. “Pelo contrário”, disse, em tom de ironia. Zambelli, como é praxe na direita extremista da qual ela faz parte, se posiciona desinformando o público que visa atingir. Primeiro porque o STF apenas atendeu a um pedido da vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araújo, que em sua manifestação emitiu a seguinte reprimenda: o porte de arma de fogo para defesa pessoal não lhe autoriza “o uso ostensivo, nem adentrar ou permanecer em locais públicos onde haja aglomeração”.

A ameaça ali era a própria deputada, e isso não tem nada a ver com “autodefesa”, mas em seu comunicado Zambelli insiste em dizer que bandido mesmo é quem mora em comunidades — assim mesmo, citadas como eufemismo. Zambelli parece ignorar (sabemos que não ignora) que nenhuma arma “brota” ou é fabricada em uma comunidade. Se chegou até lá é porque alguém, provavelmente uma autoridade também autodeclarada de bem, furou os sistemas de controle de armas e munição.

Em anos recentes, as maiores apreensões de armas no país não aconteceram em “comunidades”, mas em casas bem equipadas e bem protegidas. Em 2019, na maior da história do Rio, por exemplo, a Polícia Civil encontrou 117 fuzis incompletos na casa de um amigo do PM Ronnie Lessa no Méier, bairro de classe média da zona norte da capital fluminense. Vizinho de Jair Bolsonaro em um condomínio de luxo na Barra da Tijuca, Lessa é acusado de ser o responsável pelos disparos contra a vereadora Marielle Franco, símbolo da luta pelos direitos humanos, e seu motorista, Anderson Gomes, em março de 2018.

Durante a campanha, Jair Bolsonaro (PL) e seus seguidores não pouparam esforços para associar os territórios periféricos à criminalidade. Como quando espalharam que as iniciais CXP, inscritas em um boné usado por Lula (PT) em uma visita ao Complexo do Alemão, era homenagem a uma facção criminosa. A deputada pistoleira que colocou a vida de um homem negro em perigo ao persegui-lo pelas ruas de São Paulo fez o mesmo ao dizer que são as comunidades, e não gente como ela, os riscos à segurança da população.

A publicação da nota cínica e desinformada da deputada dividia espaço, na mesma página de jornal do dia seguinte, ao discurso de posse do novo ministro de Direitos Humanos, o jurista e filósofo Silvio Almeida. O tamanho do desafio não poderia estar mais bem desenhado. No evento, Almeida prometeu recriar o programa de proteção aos defensores de direitos humanos e os mecanismos de prevenção e combate à tortura. “O Brasil ainda não enfrentou a contento a escravidão, assim como outros traumas, o que permite que a obra da escravidão se perpetue pelo racismo e na violência contra pretos e pobres no país.”

A publicação da nota cínica e desinformada da deputada dividia espaço, na mesma página de jornal do dia seguinte, ao discurso de posse do novo ministro de Direitos Humanos, o jurista e filósofo Silvio Almeida. O tamanho do desafio não poderia estar mais bem desenhado. No evento, Almeida prometeu recriar o programa de proteção aos defensores de direitos humanos e os mecanismos de prevenção e combate à tortura. “O Brasil ainda não enfrentou a contento a escravidão, assim como outros traumas, o que permite que a obra da escravidão se perpetue pelo racismo e na violência contra pretos e pobres no país.”

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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