Zbwsk

Filho do abandono e do medo, sou algo, aquilo que restou sozinho no mundo. Por isso, meu nome é Zbwsk e choro à noite, todas as noites, no quarto desta pequena cidade gótica em cuja casa térrea, apertada em poucos cômodos, de propriedade de tia Ludmila e seus filhos autoritários, vivo e me assisto a viver.

Da janela diviso a rua calma – um que outro cão, o patear de algum cavalo a conduzir seu cavaleiro e o ruído estrepitoso dos carroções que às tardes passam rumo ao Monte H. – onde, dizem, todas as coisas acontecem.

Zbwsk – antes meu nome fosse outro e outro o meu destino. Arrasto as cadeiras das casas; limpo, obsessivo, tarde da noite, o chão debaixo das mesas – sem que ninguém da casa saiba, ouça ou veja. Salto e brinco – às vezes – sobretudo depois de abrir e devorar a terceira lata de sardinhas, que roubo à despensa – com uma luxúria quase assassina. Acentua o sabor das sardinhas o ímpeto secreto com que as devoro com gula, pelo simples fato de que é noite, faz silêncio, e penetrar clandestino na despensa me parece sempre uma excitante aventura.

Zbwsk – dessem-me outro nome talvez não fosse tão devotado às coisas esdrúxulas e, o mais das vezes, pagãs. Possivelmente dormisse à noite e despertasse pela manhã como todos os seres do mundo – o bocejo, o espreguiçar-se, a pasta-de-dente, o café, o pão, o jornal.

Não, como me chamo Zbwsk – e este é o meu maior anátema – vejo-me forçado a levantar pelas madrugadas frias e, dirigindo-me, pé ante pé, ao porão, dali retirar o pano-de-chão e o balde. Apetrechos indispensáveis e sem os quais eu não poderia cumprir o rito a que me obrigo e me imponho – este que já me caleja as mãos, de esfregar e esfregar debaixo das mesas – como se ali morasse o azinhavre, a sujidade mais suja, os bacilos mais improváveis. Esfrego e esfrego – sempre temeroso de que alguém acorde no meio da noite e me flagre na faina repetitiva e abominável.

Pela manhã, tia Ludmila e seus filhos autoritários sequer olham debaixo das mesas. Já nem mais se espantam que debaixo delas o chão esteja, de novo, impecavelmente limpo e higienizado.

Wilson Bueno. “A Copista De Kafka” – Editora Planeta – Entre Os 5 Finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura/Prêmio Apca de Literatura 2008.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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