“…Eu não consigo entender sua lógica
Minha palavra cantada pode espantar
E a seus ouvidos parecer exótica”.
(Muito Romântico – Caetano Veloso, 1978).
Não é culpa da pandemia que as interações à distância se configurem em uma fábrica fordista que trabalha na produção constante e alucinada de conflitos. O problema é anterior; é inerente às ferramentas de comunicação digital essa tendência belicosa, não só presente nas chamadas plataformas de redes sociais, mas também própria da troca de mensagens nos aplicativos para esse fim. Quem entregar a idade e assumir que já frequentou salas de bate papo lá na virada do milênio ou que tinha conta do ICQ, no cenozoico da comunicação virtual e instantânea, não vai me deixar mentir. Mesmo nas trocas de e-mail, desde que a internet é mundo e forjada com DNA fardado, a tensão e os desentendimentos sempre estiveram ali, à espreita.
A sensação que se tem é de que precisa ter doutorado para interpretar com precisão as intenções das mensagens e não reagir espontânea, destrambelhada ou espevitadamente às incompreensões que fatalmente derivam dessa interação. Presumir que esse tipo de comunicação seja uma oficina de mal entendidos em potencial já é um começo, que nos municia da cautela necessária para transitar pelo ambiente hostil das redes. Sem contar, no seu arsenal, com a ajuda de uma intuição aguçada e humanamente falível, a busca por essa compreensão já nasce fadada ao insucesso. Mas a garantia de acerto, de fato, é zero.
É sempre arriscado adivinhar as intenções de frases que são escritas ou lidas rapidamente, sabe-se lá em que contexto e em qual estado de ânimo, de ambos os lados desse vetor de dois gumes. Muitas vezes, o que não é dito ou que não foi expressamente digitado soa mais pragmaticamente inteligível que frases e informações encaminhadas no impulso dos exibicionismos nossos de cada dia. Há quase que sempre um pensamento silencioso numa ponta da comunicação, fervilhando apenas na mente do emissor, e a falta de noção completa a respeito dele no vazio alheio do destinatário da mensagem. Quando esta chega por meio de um grupo, então, é um salve-se quem puder! Isso se as frases não vierem carregadas de erros ortográficos (longe de parecer pedantismo besta e preconceituoso), que confundem ou mudam o sentido do conteúdo. Tem também aquelas mensagens com palavras e sílabas entrecortadas por pontos e traços (quem me explica de onde vem isso?), que faz a gente questionar se precisaria estudar o Código Morse ou dispor de capacitação específica para alcançar os significados todos da missiva tecnológica.
“Faço no tempo soar minha sílaba”
(idem).
Existem normas de procedimento e blá-blá-blás contratuais nos grupos de mensagens, além de muita dejeção de regras nos espaços virtuais, com o objetivo de ajustar funcionamentos e que deveriam facilitar as coisas, mas se assemelham à redação das bulas de remédio e às letras minúsculas dos termos de adesão, que ninguém respeita e que só são lidas, lembradas e assimiladas por gente que, de tão certinha, até assusta. Por isso que vira um desafio da Esfinge desvendar os enigmas contidos nas indecifráveis entrelinhas dessa comunicação e abre-se, a partir daí, um leque de especulações que descambam aos desentendimentos. Quer ver só? Não é apenas fácil tretar nos grupos de família por questões políticas, por exemplo, como inevitável, convidativo, instigante. Batizaram como sendo “da família” justamente para permitir e liberar geral a guerra santa.
“Canto somente o que não pode mais se calar”.
(idem).
Querendo manifestar sua opinião em uma conversa no grupo do condomínio, mas com receio de dar bola fora, por pegar o bonde andando, a esposa recorreu ao marido em mensagem individual pelo Whatsapp:
– Quem é a fulana?
Ele, com as calças na mão, em sentido ainda figurado, respondeu no susto:
– Não sei! Não tenho nada a ver com isso! Se falaram, é mentira desse povo! Não peguei!
– Calma, disse ela. Não se entrega, criatura desprovida de intelecto e com reduzida capacidade cognitiva!
Em verdade mesmo, ela não se referiu assim a ele, pois usou outro termo, mais carregado da intimidade que confronta o casal: – Bicho burro!
A relação já estava naquele patamar de intolerâncias da fase derradeira e as poucas palavras trocadas não eram sequer proferidas, mas apunhaladas. A cotovia, há muito, morreu rouca e o rouxinol teve a goela costurada com os alfinetes lançados no espaço, em rasantes e egocêntricas trajetórias. Os afagos, tão necessários à sobrevivência da bicharada, seja burra ou esperta, carregavam o peso incômodo dos costumes e das repetições autômatas que cabem no modo Família Margarina de se mostrar. O vocabulário, ao menos, é revelador de que algum calor teimoso emanava daquela conexão, ao invés das gélidas, cerimoniosas e hipócritas interações, mantenedoras das aparências e simuladoras de um respeito escasso. Acabaria antes mesmo que a resposta para a pergunta “quem é a fulana” estivesse na ponta da língua do interlocutor adversário e com uma profusão de informações que completaria palestras ou tratados inteiros sobre o assunto.
O fato é que a pergunta “quem é a fulana” era uma dúvida simples e banal; exigia resposta tranquila e objetiva. Espero mesmo que tenha sido escrita com um ponto de interrogação no final da frase, para reafirmar esse sentido e intenção. Mas bateu na outra ponta com tom acusatório, carregado de batom na cueca e foi respondida com culpa arrebatada. Não apenas pela precisão da esposa em adjetivar e situar o marido no reino animal, mas por tudo o que já foi manifestado aqui na problematização e em alerta aos perigos de incompreensões inerentes ao MMA da comunicação digital. Não existe blindagem, resta-nos preventivamente apenas a certeza: uma hora, vai dar ruim. A mágica é procurar por algum punhado de angu no meio desse caroço.
“…Sou o que soa, eu não douro pílula”. (Idem).