Coringa

Entendo que o filme seja perigoso, mas é perigoso como toda obra-prima

A pergunta “você já viu ‘Coringa’?” tem substituído nas rodas de conversa o já habitual “você já viu ‘Bacurau’?”. Por um motivo: todo o mundo já viu Bacurau. Não? Você não viu Bacurau? Seria Lunga o Coringa brasileiro?

As opiniões divergem. “Queria pedir que ninguém visse o filme do Coringa, essa obra fascista que faz apologia ao armamento da população e encarna ódio da classe média que, não conseguindo ascender socialmente, adere à violência gratuita, praticada, claro, por um homem branco hétero cis incel —foi o Coringa que criou o Bolsonaro.”

“Queria pedir que ninguém visse o filme do Coringa, essa propaganda esquerdista que culpa os ricos pela miséria —e trata a psicopatia como uma doença social, estratégia típica da esquerda, que tenta convencer que até o palhaço serial killer é uma vítima da sociedade quando, na verdade, a balbúrdia no Equador e no Chile, hoje, tá sendo causada por gente como ele —foi o Coringa que criou a Venezuela.”

“Queria pedir que ninguém visse o filme do Coringa, mas não porque ele é de direita nem porque ele é de esquerda. Mas porque ele não é nem uma coisa nem outra. Foi o Coringa que criou a Tabata Amaral.”

“Queria pedir que ninguém visse o filme do Coringa —ele faz apologia à dança despropositada. Já pensou que inferno se todo palhaço resolver dançar nas escadarias? Já pensou o problema que isso pode gerar a nível de trânsito?”

“Queria pedir que ninguém visse o filme do Coringa. Ele alimenta a palhaçofobia —todo dia morre algum palhaço por ser palhaço. Num mundo já tão clownfóbico, o Coringa alimenta a crença de que todo palhaço está esperando você dormir pra te matar.”

Que filme perturbador. Cabe tudo nele. Entendo que ele seja perigoso, mas é perigoso como toda obra-prima. Não sei até agora o que achar, mas não acho nada do que eu disse acima —e que tanta gente tem dito por aí. Não consegui ver nele  um herói de esquerda nem de direita, e muito menos um herói nem-direita-nem-esquerda, mas uma espécie de Raskólnikov, um sujeito às voltas com um mundo em que tudo é possível —e ninguém está nem aí pra ele. Não tem Deus, mas também não tem assistência social, não tem inclusão, não tem política pública, não tem tratamento continuado, não tem coleta de lixo, não tem Estado sob nenhuma forma —a não ser a polícia.

É um filme perigosíssimo. Queria pedir que todo o mundo visse o filme do Coringa.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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