Desproporções

Há uma sequência em ‘Amarcord’, o grande painel memorialista de Fellini, em que “Titta” – alter ego do diretor – leva os amigos para acompanhar a chegada de um navio ao porto da cidade e, como eram todos crianças, o que os olhos deles veem é uma imagem amplificada, distorcida – a passagem de um transatlântico gigantesco, iluminado como uma nave de outro planeta. Quando guri, meu lance era com aviões. O Pai era fundador e gerente da VASP (Viação Aérea São Paulo) em Curitiba.

Estávamos nos anos 60. Eu viajava pra caramba, uma, duas vezes todas as semanas. Para um garoto de 8 anos, era muitíssimo. Mais ainda pra quem, como eu, queria ser piloto de guerra. Qual guerra? Qualquer uma, desde que cheia de ataques-surpresa, bombardeios, kamikazes – e bastante fumaça, sons e voos rasantes; como no cinema. Certa vez, a sete mil metros do chão, uma daquelas janelinhas se abriu e foi mó furdúncio a bordo. Eu, que não conhecia a morte, fui apresentado a ela, mas polidamente recusei-lhe a mão. E nem tchans: só ria da confusão. No fundo, doce ilusão de criança, tinha certeza que algum dos adultos, como é próprio dos adultos, acharia uma solução qualquer dali a pouco. Não me lembro qual era o equipamento em que estávamos voando, mas posso garantir que era grande. Muito grande. Como o transatlântico de ‘Amarcord’. Quando o Concorde foi lançado, pensei comigo: ‘Olha o avião da minha infância’. Claro, o mundo era diferente. As crianças eram diferentes. Nosso olhar era diferente.

Até a bunda da Esmeralda, a não proclamada rainha das mulatas do Rebouças, era uma distorção do tempo: uma amplificação, uma hipérbole. Algo tão surreal que o próprio Salvador Dali não hesitaria em autografar aquela cauda. Tudo era exageração – paródias, alegorias. Eu não tinha medo de nada, a não ser de que os cruéis alemães e japoneses se rendessem e nosso esquadrão fosse dispensado da FAB por falta do que fazer.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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