Deu micose no jazz

Até hoje não descobri se ao boêmio é melhor a fidelidade extrema a um bar ou se a solução está em prevaricar a cada dia em boteco diferente.

Não sei nem me interessa saber, posto que jamais fui fiel a bar algum. Entrava e saí de tantos quantos a sede exigisse, fosse qual fosse o adiantado da hora. Falar nisso: também não sou capaz de atinar com a palavra adiantado da expressão acima, considerando que um boêmio está sempre atrasado.

Fica assim estabelecido que éramos infiéis contumazes, trocando de bar como trocávamos de meias. Falar em meias: o Leminski chegava a trocar ambas ao mesmo tempo, saindo de casa com uma amarela e outra vermelha, achando tão normal quanto um Raul Seixas. Pena a Lina Faria não ter fotografado as particularidades leminskianas.

Entre um bar e outro, incorporavam-se outros tantos à maratona. É que bares têm manias, como se velhos fossem. Fecham em horas inoportunas, os tira-gostos nem sempre estão a gosto. Falar nessas coisas: um dia sou chamado ao Geraes, botequim mineiro que não vingou na esquina da Rua do Rio com a Visconde do Rio Branco. Antes de sentar pergunto ao chefe da mesa como vai tudo. O chefe era Nireu Teixeira. Vai mal, disse ele. A cerveja que devia estar gelada, vem quente. O torresmo que deveria vir quente, eles servem gelado. Não se fazem mais bares como antes, suspirou.

Então uma noite estávamos no Bar do Queixo, adrede conhecido como Botafogo. Mesa grande, aquela quantidade enervante de homens. E uma mulher, Cleide Werner, namorada do João Alfredo. Falar em João Alfredo: economista do IPPUC, a Dóris deve conhecer.

A Cleide é de Blumenau, veraneava em Camboriú. Todo fim de semana, João Alfredo embarcava em um Catarinense para ver a namorada. Algumas vezes o velho Werner deixava a menina subir a serra. Seus cuidados eram justificados. A Cleide tinha 17 anos, parecia ter 14. Seu namorado já era homem feito, cheio de malícias, se me faço entender. E de micoses.

Foi o que ficamos sabendo aquela noite, quando, sabe-se lá por quais razões, a Cleide contou que o João Alfredo gostava de ir à praia colocar suas micoses ao sol. Inconfidência catarina, mal que ataca as pessoas lá nascidas, eis que a senhora minha mãe também de lá é procedente. Conheço, pois, tais pecadilhos.

Sérgio Mercer trocou meio olhar com o Solda e ambos acertaram a perdiz ao mesmo tempo. Mercer levantou sacudindo a barriga para emendar uma versão de Because of You. A letra era minimalista: “Micose of You, Blumenau, Camboriú”.

Mas o que ele fez com essas cinco palavras, os scats que foi capaz de mandar ver, qual uma Aretha Franklin, uma Billie Holliday, só quem estava lá pôde se deliciar. Falar em instrumentos tocados pelo Gordo: ele criou dois, os quais, por isso mesmo, tocava como ninguém. O bandoneón imaginário e o trumpete vocal. O bandoneón era escravizado sobre a coxa, na qual depositava um lenço, por supuesto. O trumpete era tocado com o canto da boca, o dedão direito sobre o lábio inferior, os dedos abertos à frente, mindinho direito grudado ao dedão esquerdo.

A execução de Micose of You durou quase dez minutos. Mercer e seu trumpete, dignos do Satchmo, jamais foram ouvidos de novo. Felizmente, também jamais olvidados.

João Alfredo foi imortalizado. Ninguém sabe se o sol de Camboriú ajudou a curar suas micoses. A Cleide casou com ele mesmo assim. Melhor: ainda estão casados. Falar nisso: tem dois filhos, a Ana e o Bernardo. Não consta que tenham herdado os fungos do pai.

|2009|

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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