Lan e o “Corvo do Lavradio”

Os obituários publicados na imprensa sobre a morte do genial caricaturista Lan foram indigentes, com exceção do artigo do excelente colunista Bernardo Mello Franco no Globo do dia 6/11.

O italiano-uruguaio-argentino, mas acima de tudo carioca, Lanfranco Aldo Ricardo Vaselli Cortellini Rossi Rossini, ou simplesmente Lan, como assinava suas caricaturas, merecia muito mais da imprensa que sempre honrou. Inclusive, com exceção do artigo do Bernardo, nenhum outro contou sobre a caricatura mais marcante realizada por Lan. A história consta do livro de memórias de Samuel Wainer (“Minha razão de viver”) e da recente biografia do mesmo de Karla Monteiro (“Samuel Wainer: o homem que estava lá”), cuja resenha o Célio Heitor Guimarães está devendo aos leitores.

No Rio de Janeiro de 1953, ano da chegada de Lan ao Brasil, o veterano jornalista policial Nestor Moreira, que trabalhava no jornal A Noite, onde criticava veementemente a violência da polícia carioca, depois da ronda pelos distritos policiais e pelo bares, pegou um táxi (no tempo em que os mesmos não tinham taxímetro, o preço era combinado entre chofer e cliente) para voltar à casa. No meio do caminho, Nestor Moreira discutiu o valor pretendido pelo motorista e os dois começaram a bater boca. Sem solução, rumaram à delegacia mais próxima, onde resolveriam o conflito. Para azar de Nestor Moreira, o delegado de plantão era o “Coice de Mula”, um dos mais violentos policiais que se tinha notícia e objeto de pesadas críticas e denúncias por parte do repórter. Assim que reconheceu Nestor Moreira, acompanhado de vários meganhas, “Coice de Mula” começou a surrar violentamente Moreira que, depois de várias horas de espancamento, teve que ser levado ao hospital.

O acontecimento virou escândalo na imprensa carioca e teve profunda comoção na opinião pública. Depois de alguns dias de hospital, com os médicos fazendo tudo o que era possível, Nestor Moreira veio a falecer. Ao velório e ao enterro compareceram milhares de pessoas. Samuel Wainer, da Última Hora, e Carlos Lacerda, da Tribuna de Imprensa, estavam lá. De amigos de juventude, Wainer e Lacerda haviam rompido espetacularmente quando o primeiro fundou o citado jornal para apoiar Getúlio Vargas e o segundo criou o mencionado periódico para derrubar o mesmo Getúlio. No auge da briga, Lacerda, que tinha frequentado muito a casa da família Wainer, partiu para o golpe baixo. Publicou em manchete espetacular na Tribuna da Imprensa que Wainer havia nascido na Bessarábia (hoje República da Moldávia, na época do nascimento de SW, Império Russo). A informação era uma bomba atômica: sendo bessaberiano, Wainer, não brasileiro, não podia ser dono de um jornal. Lacerda defendia abertamente o fechamento da Última Hora. A briga foi feia. Toda a imprensa ficou ao lado de Lacerda, com exceção de Adolpho Bloch (que, nascido na Ucrânia, também não poderia ser dono da Manchete). Wainer e Bloch se detestavam, tratavam-se mutuamente como “aquele judeu filho duma puta”, mas, de repente, viraram amigos de infância.

O caso chegou até o Supremo Tribunal Federal, onde Wainer foi absolvido da acusação de falsidade ideológica, seu irmão havia forjado um documento em que declarava que Samuel era brasileiro, nascido quando a família já tinha imigrado para São Paulo. Inclusive o rabino de São Paulo, sob juramento judicial, afirmou que a circuncisão de Wainer havia sido realizada por ele logo após o nascimento. Dez anciões judeus também depuseram, sob juramento mais uma vez, que haviam assistido ao ato. Wainer sempre sustentou a história do seu nascimento em São Paulo. Vinte anos depois da sua morte, na segunda edição de suas memórias, apareceu a verdade: tinha nascido na aldeia de Edenitz, interior da Bessarábia, nos confins do Império Russo, chegando ao Brasil com dois anos de idade.
Condenado em segunda instância, antes da absolvição pelo Supremo, Wainer foi parar na cadeia. Não tinha curso superior, mas os juízes entenderam que dono de jornal tinha direito à prisão especial. Wainer foi cumprir pena num quartel do centro do Rio. Entre milhares de visitas, uma lhe chamou a atenção, Danuza Leão, vinte anos mais jovem. Apaixonaram-se, casaram e tiveram três filhos.

Mas, voltemos ao Nestor Moreira.

Na hora em que o caixão ia baixar à sepultura, Carlos Lacerda (que calçava sapatos pretos, meias pretas, terno preto, camisa preta e gravata preta) pediu a palavra e fez um discurso demagógico, exaltando qualidades do morto que nem a esposa, os filhos e os netos confirmariam e terminou a falação dizendo que o verdadeiro assassino de Nestor Moreira não era o “Coice de Mula”, e sim Getúlio Vargas. Samuel ficou enojado e se retirou do enterro indo para a Última Hora.

Subindo as escadas da redação, deu de cara com Lan que vinha em sentido contrário, já havia entregue a caricatura do dia e se preparava para ir às mulatas, aos morros, ao jogo do Flamengo e a boêmia, suas verdadeiras paixões, exatamente nessa ordem.

Wainer, furibundo com o que havia assistido, pegou Lan pelo braço e exigiu que ele fizesse uma caricatura de Lacerda como se fosse um urubu. Lan voltou a mesa de desenho e como não se lembrasse da figura da citada ave, e tendo preguiça de procurar no arquivo, desenhou Carlos Lacerda como um corvo.

Apresentado o desenho, Samuel Wainer vibrou. Na edição do dia seguinte, na página três, havia um artigo do diretor de redação Paulo Silveira denominado “O Corvo”. Foi um sucesso editorial. Na próxima edição, a caricatura de Lan ganhou a capa e a Última Hora passou a não mais escrever o nome de Carlos Lacerda. Só se referia a ele como “O Corvo do Lavradio”. Lavradio era o nome da rua onde a Tribuna de Lacerda tinha sede. Segundo Karla Monteiro, Wainer disse que “Lan captara a alma torva deste filho da puta”.

O apelido se espalhou pelo Brasil inteiro. Na própria Tribuna da Imprensa os funcionários só se referiam a Lacerda como “A Ave”.

Nas campanhas eleitorais, Lacerda alugava um caminhão (era chamado o “caminhão do povo”) e rodava os bairros do Rio de Janeiro em comícios relâmpagos. Sempre havia, em todos os comícios, um grupo de pessoas que no meio dos discursos de Lacerda gritavam “Cala a Boca, Corvo!”. Lacerda ficava puto, interrompia o discurso para tomar fôlego e continuava. Minutos depois, vinham novamente os mesmos gritos. Carlos Lacerda não conseguia terminar um comício, mas se elegia. O acontecimento virava manchete em Última Hora.

Carlos Lacerda nunca mais se livraria do apelido. Mais tarde, já governador da Guanabara, o repórter policial Amado Ribeiro da Última Hora (personagem constante de Nelson Rodrigues) descobriu que a polícia de Carlos Lacerda matava mendigos e jogava os corpos do Rio Gandú. Última Hora explorou o caso em várias matérias. Paulo Francis, o principal colunista político de Última Hora, passou a chamar Lacerda de “Mata Mendigos”. Última Hora entrou na onda, Lacerda, além do “Corvo do Lavradio” era também o “Mata Mendigos”.

Lan, na época, se transformou no mais famoso caricaturista do Brasil.
Após 1964, a Última Hora começou a sua decadência econômica. Não tinha anunciantes. Empresa que anunciasse em Última Hora enfrentava sérios problemas com o regime militar. O jornal de Wainer começou a perder profissionais. O primeiro a ir embora foi Nelson Rodrigues. Apesar de ter ficado sempre ao lado de Wainer contra Lacerda, Nelson tinha uma família grande e precisava do salário para viver. Salário era algo que aparecia de tempos em tempos na Última Hora de então.

Rodrigues,Lan e o “Corvo do Lavradio” depois de uma rápida passagem pelo Diário da Noite, foi chamado por Roberto Marinho para uma coluna no Globo. Temendo a reação da Igreja, que fazia forte campanha contra as colunas e peças teatrais de Nelson Rodrigues, o jornalista Roberto Marinho propôs ao Nelson uma coluna de futebol. Nascia a famosa “À sombra das chuteiras imortais”.

Aliás, tirar jornalistas da Última Hora passou a ser a diversão predileta do dr. Roberto Marinho. O segundo que tirou de lá foi o João Saldanha. Gostou tanto da experiência que trouxe vários outros “comunistas” da redação de Última Hora. Passaram a ser os comunistas do dr. Roberto Marinho.

Lan, com vários meses de salários atrasados, e tendo que sustentar a sua mulata oficial, além de tantas outras, saiu da Última Hora e depois de uma rápida passagem pelo Jornal do Brasil, aportou no Globo, onde ganhou uma coluna denominada Cariocaturas. Ninguém como ele retratou tão bem o Rio de Janeiro. O artista, que morreu com 95 anos, merecia muito mais, inclusive do Globo, uma profunda e verdadeira resenha de sua vida pelas terras cariocas.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
Esta entrada foi publicada em Paulo Roberto Ferreira Motta e marcada com a tag , . Adicione o link permanente aos seus favoritos.
Compartilhe Facebook Twitter

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.