O cartum perfeito

Harold Ross, fundador da New Yorker, queria saber qual dos elefantes estava falando

A morte recente de um cartunista da The New Yorker não deveria interessar a um jornal brasileiro. Mais ainda sendo ele o quase obscuro Dana Fradon, que não ficou famoso como James Thurber, Charles ​Addams e Saul Steinberg, os cartunistas-monstros da revista. Mas Fradon tinha seus méritos. De 1948 até se aposentar, há não muito, publicou nela quase 1.400 cartuns. E contou em entrevistas como Harold Ross, fundador da New Yorker, em 1925 —e sem saber desenhar nem casinha com chaminé—, inventou o cartum moderno.

Ross recusava qualquer cartum com diálogo. Dizia que, quando dois personagens falam, o desenho é desnecessário —se alguém tivesse de falar, só um deles podia fazer isso. O cartum perfeito seria aquele em que a fala é irrelevante sem o desenho e este, incompreensível sem a fala —mas a junção dos dois forma um sentido completo. Outra de suas cláusulas pétreas era a de que, havendo mais de um personagem no cartum, aquele que falava tinha de estar com a boca aberta. Um exemplo hilariante foi quando recusou um cartum perguntando na margem: “Qual dos elefantes está falando?”.

Ross se detinha sobre cada cartum para certificar-se de que, no desenho, as roupas estavam abotoadas do lado certo, os degraus de uma escada obedeciam à escala correta ou as portas não se abriam ao contrário. Para ele, erros assim eram prejudiciais ao entendimento do cartum.

E treinou seus diretores de arte para decidir qual desenhista era mais adequado a esta ou àquela ideia e vice-versa. Um cartunista podia submeter-lhe uma ideia e ele gostar dela, mas achar que ficaria melhor se desenhada por outro. Ou um desenho ter várias falas possíveis e ele submetê-lo à redação até que alguém surgisse com a fala ideal.

Ross morreu em 1951, mas a New Yorker manteve até hoje seus critérios. Daí, nesses 94 anos, raramente ter publicado um mau cartum. Há uma ciência nisso.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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