O velho matador

Foi num churrasco na casa do marido da minha sobrinha que eles se chegaram a mim. Vi logo que eram estrangeiros, pela roupa, depois pelo modo como se fechavam num canto, falando baixo, e logo depois iam em diferentes direções, abordando diferentes pessoas. Chegaram até mim, e eu sou um homem que todo mundo chama o Rei da Simpatia. Apertei suas mãos, aprendi seus nomes, ofereci bebidas e assentos, desejei que se divertissem; e me afastei. Era a festa dos meus 75 anos, eu não podia parar num só lugar a noite inteira.

 Marcamos reunião para o dia seguinte, e eles voltaram. Queriam fazer um documentário para passar lá na Europa, sobre minha atividade nas milícias. Eu disse a eles que foram as milícias que livraram nossa pátria do comunismo, da corrupção e do voto. Desdobrei exemplos. Eles perguntaram se eu repetiria tudo para eles, com as câmeras, e eu disse que sim, que claro. Falei do meu orgulho em ter executado com minhas mãos mais de mil criminosos políticos que tinham tentado aplicar idéias estrangeiras sobre o nosso povo. Expliquei a eles que todo mês alguém da TV estatal mandava me convidar para um programa para que eu explicasse isto aos jovens.

Trouxeram as máquinas de filmar, viajaram comigo cruzando o país, ficamos companheiros. Eles eram muito concentrados no que faziam, mas sorriam nos intervalos. Só pareceram meio chocados quando re-encenei algumas cenas de interrogatório ou de execução, quando supervisionei a reconstituição de aparelhos especiais, quando mostrei alguns dos souvenirs que preservara.

Fomos a todos os lugares de despejo: à Lagoa dos Patos, ao Brejo da Capelinha, ao Paul Turfoso. Fiz um histórico de todas as execuções heróicas que tinham ocorrido em cada local, e em cada gravação senti, enquanto mostrava tudo com gestos largos e explicava com voz sadia, uma estranha comoção se apossar de mim, como se todas as almas dos corpos que eu executara naqueles locais estivessem ali, à minha volta, esperando somente uma palavra minha para poderem ficar livres para sempre.

Despedimo-nos entre malas e abraços. Voltei às minhas atividades, ao meu gamão, à minha piscina, aos meus churrascos. Então veio a fama, a invasão da imprensa. Atribuíam-me frases que eu talvez tivesse dito, sim, mas talvez não. Fui notícia e fui especial de horário nobre por toda parte. Meus netos, trêmulos de indignação, me mostravam nos iPhones as capas de revistas estrangeiras onde eu era chamado de carrasco e de assassino. Mas da minha varanda, do alto dos meus cabelos brancos, eu olho a cidade, em todas as direções, como que esperando que um inimigo qualquer se erga. Nenhum se ergueu. Nenhum se erguerá.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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