Prendi questa mano, zingara…

Eu tinha (possuía) a cama, um bloco de notas e uma caneta. Criado-mudo ou mesinha de cabeceira, não tinha. Nós quatro, numa noite mais caliente, ou calda, participamos de uma orgia sem precedentes na história das fantasias caseiras. Sei que a cigana me enganou.

Disse que eu seria um escritor famoso antes que o galo cantasse. Mas ele foi para a panela quando ainda nem estava al primo canto e eu ainda escrevia sonetos de pés quebrados e mãos tortas. Qual não foi minha surpresa, na manhã seguinte, ao fazer uso dos apontamentos daquela longa noite de envolvimento com o bloco de notas e a caneta, quando descobri que ali estava o esboço de algo que poderia chamar de conto. Enrubesci lendo algumas passagens. Gelei lendo outras. Tinha, além do alto teor de sensualidade, uma linguagem rangente e pegante. Duvidei da possibilidade e tentei imaginar o que havia rolado na noite anterior para que o resultado fosse tão luxuriante. Nuvens carregadas de esquecimento e ressentimento invadiram minha mente. Choveu forte sobre variantes, variáveis, conceitos, ponderações. Para amainar o frisson coloquei um pseudônimo e engavetei.

Profissionais altamente qualificados, no entanto, logo descobriram a farsa e quiseram publicar — e o fizeram — a todo custo numa revista literária de categoria. Uma caixa de supermercados desmaiou ao ler no ônibus. Um corretor de seguros tentou se jogar da sacada da empresa – por sorte não havia sacada. Todas as anchovas fêmeas de um cardume entraram no cio ao mesmo tempo. Um rio subiu a serra e desaguou na nascente. Os membros de um coral começaram a cantar atirei um pau no gato no meio de La traviatta.

Rupert Updergraff comeu duas orelhas do seu cachorro de estimação. Enfim, a repercussão da leitura do conto foi o que foi. Hoje, graças ao bom deus, sou apenas um mediano vitrinista no Braz. Estou consciente de que não se deve cutucar a imaginação com vara longa. Escrevo estas simples memórias sem me lembrar muito bem do que aconteceu. Rechaço blocos de notas e canetas para uma relação duradoura.

*Rui Werneck de Capistrano é autor de vários textos. Inclusive esse.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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