O cigarro mata mas, antes deste desfecho previsível, a vítima entra numa agonia inenarrável. Mesmo antes de ser atacado por alguma doença, o fumante fede e passou a ser visto como alguém desprezível e indigno. E ainda assim uma considerável multidão de jovens e pessoas “beatful people” fumam; gente inserida, notáveis, inteligentes e capazes de ter este discernimento, fumam. Fumante é burro? É mesmo? O Chico Buarque é burro? Freud era burro? Deram provas incontestáveis que não. Ninguém me convence que aquelas fotos tenebrosas no verso das carteiras de cigarro exercem a mais remota influência negativa. Porque fumar, dentre o vasto repertório de fontes rápidas e acessíveis de prazer, é a mais sedutora e a mais inebriante forma de obter recompensa já. Por exemplo: sexo é mil anos luzes melhor, mas não é tão fácil. Ninguém acende o parceiro ou a parceira na hora que quer e pronto. Ou talvez acenda, mas o fato é que o tabagismo é barra pesada e o preço mais leve que o fumante paga é a dependência química, mais poderosa que qualquer outra drogadição, incluso cocaína e heroína, exceção feita ao potente e letal crack, o flagelo da humanidade.

O impacto da nicotina (em frações de segundos) no cérebro é a mais temível e prazerosa compensação que um ser humano pode receber a curtíssimo prazo e quando decidir. Fumar é um ato socializado ou solitário, o cigarro está sempre ali, ao alcance dos dedos, na alegria e na dor, no tédio ou na aflição. Não-fumante não compreende isso porque nunca experimentou. Mas não dá para desconfiar por que milhões de pessoas consomem um troço tão danoso à saúde? Só doido de pedra pagaria um preço tão alto para chupar fumaça e não sentir nada de bom. Em geral, não-fumantes são estranhamente arrogantes quando o assunto é cigarro. Às vezes me parece falta de imaginação.

Após passar muitos anos dando baforadas decidi parar, e parei. Só agora, dois meses depois, é que percebi que foi um ato brutal, heróico, enervante, solitário, sofrido e melancólico. A síndrome de abstinência é um terror. Suei gelado, passei noites em claro, chorei sem razão aparente, tive fantasias de morte e, sem nenhum aviso, um belo dia acordei no frescor de um amanhecer, sentindo o perfume de flor de laranjeira que sempre estivera ali e nunca senti. Senti a fragrância de mil temperinhos que não conhecia, o cheiro de pão quentinho que vinha lá da padaria (também o cheiro de bueiro que não lembrava mais como era), senti uma alegria inédita, como a de um cego que voltasse a enxergar, de alguém que não lembrava mais do cheiro da pele da mulher amada. Não fumar dá mais prazer do que fumar, foi a minha primeira impressão forte.

O que me levou a escrever sobre o assunto, no entanto, teve outra motivação, singela e, quem sabe, de natureza filosófica. Vinha passando na rua e vi um velhinho fumando, parado na esquina, provavelmente para fugir da vigilância da família. Noutro dia vi um homem destruído pela pobreza, com as marcas do envelhecimento precoce estampadas na face, ele, pobrezinho, sem eira nem beira, sem planos, nem sonhos, fumava seu cigarrinho alegremente. Tanto o velhinho como o farrapo humano estavam apegados ao último ato de prazer e compensação que restou em suas vidas: fumar. Vão morrer disso? Sim, pois não. Mas, e se tirarem o cigarro deles? Hein? Não ouvi: é melhor? Provavelmente o velhinho iria contemplar a grama crescer e logo morreria de tédio e tristeza. E o homem esfarrapado? Sem nada nem ninguém e agora sem fumar, que tal? Só quem foi fumante sabe que é melhor que os dois fumem até morrer, e vão morrer, é claro. E você, não? Até onde aprendi, da vida ninguém sai vivo.

Paulo Tiaraju (28/4/2009)

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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