O diagnóstico era obscuro, o tratamento, claro. Teria que descansar, sair do país, de preferência, onde os telefones celulares não me alcançariam, os e-mails seriam esquecidos, os compromissos, descartados. Ano passado, fiz duas viagens longas para a Europa. Quase quatro meses viajando, é verdade, a trabalho. Abri o mapa. Minha ignorância me afasta de locais como a Austrália. Minha total inaptidão na relação com o mar (gosto muito de vê-lo) me afasta de outros destinos prováveis. É fato, meu pânico de avião não me levaria até Bora-Bora ou a lugares isolados no meio do Pacífico como o Havaí. Um dos sintomas do estresse é frio. Cortada a Rússia, portanto, que não conheço e que desejo tanto conhecer. Lugar para curar estresse não é a Pérsia, não é o Cáucaso, não é a África. Pensei na África mais um pouco. Um dia. Sobrevoar o Saara foi algo inesquecível, mas meu avião costuma sempre passar pelas piores turbulências na costa do Senegal.
É claro, além de Paris, sempre teremos o Japão, mas longe e com 12 horas de fuso-horário, o que me causaria um transtorno enorme. O Brasil é sempre uma grande ideia, não conheço todo o nosso litoral, nem os Lençóis, nem Bonito. Mas qualquer um poderia me alcançar, mesmo vestindo um snorkel, submerso no rio Sucuri. Um ex-amigo me sugeriu um cruzeiro pelo Alasca, Coreia (um momento perfeito) e China. Minha empolgação pelo Caribe me fez passar umas duas horas em Aruba e entrar no primeiro avião disponível de volta para casa. Índia, não. Mongólia, não. Turquia, ainda não me resolvi quanto ao genocídio Armênio. Grécia! É isso! Mas ando tão atrasado com meus estudos pré-Socráticos… Arrisco Platão, Aristóteles e até um período decadente, cínico, cético ou estoico, mas o que falar sobre os epicuristas? O que falar sobre o prazer da vida?
“E aí, decidiu?”, ela peguntou .
Limpei a garganta e disse: “Detroit?” Ela não acreditou por algum tempo. “O que você quer fazer lá, ser assassinado? Bem, você mora em São Paulo”. Mas é a minha casa, eu nasci no Rio, conheço meus perigos. Tem algumas cenas musicais fluentes ainda, é a cidade do MC5, do The Stooges, Jack White. Além, é claro, de conhecermos Hitsville, U.S.A., o quartel de Berry Gordy e da Motown. Não aceitou. Disse: “Hoje é um museu pequeno e nada mais, com roupas penduradas e bonecos de cera.” Mississipi. Ela desacreditou. Eu repeti: “Descer o Mississipi. Olha, está tudo aqui, desenhado no mapa, saímos de Nova York (nós não vamos para lá há 3 anos). Passamos por Nashville, dizem que a cidade está incrível, vários grandes discos estão sendo gravados lá, cruzamos Dockery Farms”, “O que é Dockery Farms?”, ela pergunta. Uma plantação de algodão no delta do rio, onde aparentemente trabalharam Charley Patton, Son House e Howlin’ Wolf. Ali perto fica o cruzamento da 61 com a 49, para onde, é claro, o que é claro?, Robert Johnson, ainda muito jovem, levou sua guitarra e entregou para um homem negro e alto, reconhecido como o Diabo, que tocou algumas canções para o garoto antes de devolver o instrumento. Robert Johnson vendeu sua alma para o Diabo aqui neste lugar, você está vendo?, com o alfinete vermelho.
A próxima parada seria Memphis, Tennessee, a segunda cidade mais violenta da América, isso considerando que você descartaria Detroit, a primeira, o que eu acho triste. Em Memphis, conheceríamos o Sun Studio (olha, fiquei arrepiado) onde Elvis gravou seu primeiro compacto, para presentear sua mãe, lado A “My happiness”, lado B “That’s when your heartaches begin”. Tudoestá lá como Sam Phillips deixou, o mesmo microfone usado para cantar o primeiro single de rock-and-roll, Jackie Brenston e os Delta Cats, Rocket 88, em 1951. Passaram por lá, eu mal posso esperar, Johnny Cash, Carl Perkins, Charlie Feathers. É claro que, se eu perdi Detroit e a Motown, o que eu acho lamentável, conhecerei a Stax de Jim Stewart e Estelle Axton. Espera aqui um pouquinho. “O que é isso?”, ela pergunta. Booker T & The MG’s. Eu poderia ter escolhido Pain In My Heart, do Otis Redding, mas não sei porque essa me faz lembrar mais de lá. Descer até New Orleans, até o começo do século, a era do Dixieland, você sabe, depois, na década de 30, tudo isso espalhou para Nova York e Chicago, a era do Swing, a do Bebop, mas lá no French Quarter poderemos sentir no ar as notas esquecidas de “Basin Street blues”, “Tiger rag”,“When the Saints go marching in”. O que é isso? “Livery stable blues”, o primeiro single de jazz. Ler Faulkner por lá deve ser uma experiência maravilhosa, não acha?
Depois, poderíamos passar dias viajando de carro, a música popular americana é a mais forte e a mais importante do século XX (concordo com Caetano), ouviríamos com o passar dos dias e das noites “Skylark”, do Johnny Mercer (que nasceu naquela cidade que você quer conhecer, Savannah) passando por Santa Fé, ouvindo Change Partners a caminho de Las Vegas. O histórico Flamingo é uma boa escolha para 3 noites decadentes. Enfim, a California, Lacma, Rainbow Bar, Chateau Marmont, Sunset Boulevard, Hollywood Hills, Mulholland Drive, Death Valley, Mojave, Inland Empire, tudo ao som de “Her eyes are a blue a million”, do Captain Beefheart, uma coisa meio “Big Lebowski” e, enfim, São Francisco, onde começaríamos nossa tour Kerouac, North Beach, Haight Ashbury. Ficaríamos em um
lugar alto pra ver a cidade, Nob Hill ou Pacific Heights. A partir daí, faríamos a rota da primeira viagem de “On the road” ao contrário, Salt Lake City, Utah, Central City e Denver, no Colorado, Cheyenne, Wyoming, Stuart e Newton, Iowa, e enfim, Chicago e Ozone Park, em Nova York. Se você se animar, poderíamos passar por Detroit na volta. Você iria comigo?
Felipe Hirsch (O Globo)