30

O diagnóstico era obscuro, o tratamento, claro. Teria que descansar, sair do país, de preferência, onde os telefones celulares não me alcançariam, os e-mails seriam esquecidos, os compromissos, descartados. Ano passado, fiz duas viagens longas para a Europa. Quase quatro meses viajando, é verdade, a trabalho. Abri o mapa. Minha ignorância me afasta de locais como a Austrália. Minha total inaptidão na relação com o mar (gosto muito de vê-lo) me afasta de outros destinos prováveis. É fato, meu pânico de avião não me levaria até Bora-Bora ou a lugares isolados no meio do Pacífico como o Havaí. Um dos sintomas do estresse é frio. Cortada a Rússia, portanto, que não conheço e que desejo tanto conhecer. Lugar para curar estresse não é a Pérsia, não é o Cáucaso, não é a África. Pensei na África mais um pouco. Um dia. Sobrevoar o Saara foi algo inesquecível, mas meu avião costuma sempre passar pelas piores turbulências na costa do Senegal.

É claro, além de Paris, sempre teremos o Japão, mas longe e com 12 horas de fuso-horário, o que me causaria um transtorno enorme. O Brasil é sempre uma grande ideia, não conheço todo o nosso litoral, nem os Lençóis, nem Bonito. Mas qualquer um poderia me alcançar, mesmo vestindo um snorkel, submerso no rio Sucuri. Um ex-amigo me sugeriu um cruzeiro pelo Alasca, Coreia (um momento perfeito) e China. Minha empolgação pelo Caribe me fez passar umas duas horas em Aruba e entrar no primeiro avião disponível de volta para casa. Índia, não. Mongólia, não. Turquia, ainda não me resolvi quanto ao genocídio Armênio. Grécia! É isso! Mas ando tão atrasado com meus estudos pré-Socráticos… Arrisco Platão, Aristóteles e até um período decadente, cínico, cético ou estoico, mas o que falar sobre os epicuristas? O que falar sobre o prazer da vida?

“E aí, decidiu?”, ela peguntou .

Limpei a garganta e disse: “Detroit?” Ela não acreditou por algum tempo. “O que você quer fazer lá, ser assassinado? Bem, você mora em São Paulo”. Mas é a minha casa, eu nasci no Rio, conheço meus perigos. Tem algumas cenas musicais fluentes ainda, é a cidade do MC5, do The Stooges, Jack White. Além, é claro, de conhecermos Hitsville, U.S.A., o quartel de Berry Gordy e da Motown. Não aceitou. Disse: “Hoje é um museu pequeno e nada mais, com roupas penduradas e bonecos de cera.” Mississipi. Ela desacreditou. Eu repeti: “Descer o Mississipi. Olha, está tudo aqui, desenhado no mapa, saímos de Nova York (nós não vamos para lá há 3 anos). Passamos por Nashville, dizem que a cidade está incrível, vários grandes discos estão sendo gravados lá, cruzamos Dockery Farms”, “O que é Dockery Farms?”, ela pergunta. Uma plantação de algodão no delta do rio, onde aparentemente trabalharam Charley Patton, Son House e Howlin’ Wolf. Ali perto fica o cruzamento da 61 com a 49, para onde, é claro, o que é claro?, Robert Johnson, ainda muito jovem, levou sua guitarra e entregou para um homem negro e alto, reconhecido como o Diabo, que tocou algumas canções para o garoto antes de devolver o instrumento. Robert Johnson vendeu sua alma para o Diabo aqui neste lugar, você está vendo?, com o alfinete vermelho.

A próxima parada seria Memphis, Tennessee, a segunda cidade mais violenta da América, isso considerando que você descartaria Detroit, a primeira, o que eu acho triste. Em Memphis, conheceríamos o Sun Studio (olha, fiquei arrepiado) onde Elvis gravou seu primeiro compacto, para presentear sua mãe, lado A “My happiness”, lado B “That’s when your heartaches begin”. Tudoestá lá como Sam Phillips deixou, o mesmo microfone usado para cantar o primeiro single de rock-and-roll, Jackie Brenston e os Delta Cats, Rocket 88, em 1951. Passaram por lá, eu mal posso esperar, Johnny Cash, Carl Perkins, Charlie Feathers. É claro que, se eu perdi Detroit e a Motown, o que eu acho lamentável, conhecerei a Stax de Jim Stewart e Estelle Axton. Espera aqui um pouquinho. “O que é isso?”, ela pergunta. Booker T & The MG’s. Eu poderia ter escolhido Pain In My Heart, do Otis Redding, mas não sei porque essa me faz lembrar mais de lá. Descer até New Orleans, até o começo do século, a era do Dixieland, você sabe, depois, na década de 30, tudo isso espalhou para Nova York e Chicago, a era do Swing, a do Bebop, mas lá no French Quarter poderemos sentir no ar as notas esquecidas de “Basin Street blues”, “Tiger rag”,“When the Saints go marching in”. O que é isso? “Livery stable blues”, o primeiro single de jazz. Ler Faulkner por lá deve ser uma experiência maravilhosa, não acha?

Depois, poderíamos passar dias viajando de carro, a música popular americana é a mais forte e a mais importante do século XX (concordo com Caetano), ouviríamos com o passar dos dias e das noites “Skylark”, do Johnny Mercer (que nasceu naquela cidade que você quer conhecer, Savannah) passando por Santa Fé, ouvindo Change Partners a caminho de Las Vegas. O histórico Flamingo é uma boa escolha para 3 noites decadentes. Enfim, a California, Lacma, Rainbow Bar, Chateau Marmont, Sunset Boulevard, Hollywood Hills, Mulholland Drive, Death Valley, Mojave, Inland Empire, tudo ao som de “Her eyes are a blue a million”, do Captain Beefheart, uma coisa meio “Big Lebowski” e, enfim, São Francisco, onde começaríamos nossa tour Kerouac, North Beach, Haight Ashbury. Ficaríamos em um

lugar alto pra ver a cidade, Nob Hill ou Pacific Heights. A partir daí, faríamos a rota da primeira viagem de “On the road” ao contrário, Salt Lake City, Utah, Central City e Denver, no Colorado, Cheyenne, Wyoming, Stuart e Newton, Iowa, e enfim, Chicago e Ozone Park, em Nova York. Se você se animar, poderíamos passar por Detroit na volta. Você iria comigo?

Felipe Hirsch (O Globo)

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
Esta entrada foi publicada em Sem categoria e marcada com a tag , , , , . Adicione o link permanente aos seus favoritos.
Compartilhe Facebook Twitter

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.