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As noites geladas (só lá fora) no Auditório do Parque Ibirapuera, no BMW Jazz Festival, lembraram muito aquelas históricas noites no Hotel Nacional, na década de 80, no Rio de Janeiro, quando podíamos assistir Art Blakey, Max Roach, Ron Carter, Nina Simone, John Lee Hooker, John Zorn, John Lurie e outros clássicos. Que o cristo ajude a repetir na Cidade Maravilhosa, no Oi Casa Grande, as experiências vividas aqui nessa filial latina dos cenários distópicos de Blade Runner que é São Paulo. Normalmente ele gosta dos eventos na cidade e está presente em quase todos.

Verá dessa vez os The Dap-Kings, com seu baixista arranjador parecido com uma personagem dos Muppets, seu baterista parecido com um gerente bancário, o percussionista parecido com o maitre do seu restaurante favorito e uma das Dappetes parecida com…Aretha Franklin. Sharon Jones, por sua vez, é assombrosamente energética, cantando canções originais e bastante divertidas. Em uma delas ela repete que “sem coração ela não pode amar mas pode fazer muito dinheiro!”. O entusiasmado projeto de manter o selo independente Daptone Records, sediado no Brooklyn, merece toda a atenção do mundo. Embora nostálgico e revivalista, colhe bons frutos musicais. E, como sabemos, a tecnologia evolui, o mercado evolui, mas a essência da busca é a mesma. Sim, foram eles que tocaram em várias músicas de Back To Black. Está lá a batida, as levadas secas, os metais.

Coisa fina foi o show de Letieres Leite e Orkestra (de percussão e sopro) Rumpilezz. O músico baiano, que fez suas andanças pelo sul com Nei Lisboa e Renato Borghetti, viveu por 10 anos em Viena até voltar para o país no meio da década de 90 e espelhar sua bela música em mil trabalhos. Durante o ótimo show, os arranjos de Letieres lembravam Moacyr Santos, mas meu amigo André Frateschi o definiu, mais que carinhosamente, com uma espécie de Frank Zappa da Bahia. Rumpilezz, a elegante orquestra afro-brasileira criada e regida por Letieres Leite, tocando a melodia de Taboão é representante do que há de essencial e lindo na música brasileira.

Joshua Redman criou uma atmosfera milagrosa no ar. Acompanhado de Greg Hutchinson na bateria e Reuben Rogers no baixo, era possível perceber o charme e a energia tocando todos os sentidos de quem assistia. O tema de Autumn in New York de Vernon Duke, mil vezes visitado por gente como Billie Holiday, Charlie Parker, Frank Sinatra, Charles Mingus, Chet Baker, Clifford Brown, foi reinventado, mais uma vez, naquele palco. Palco aliás com som perfeito.

Mas é claro, o melhor da história estava literalmente por chegar. E as cinzas do vulcão de Puyehue quase impediram nosso super-herói de pisar no palco aquele dia. Wayne Shorter, 78 anos de história, e seu quarteto, viajaram de Buenos Aires até Uruguaiana, de ônibus escolar, ao lado de seus instrumentos. Foram quase dez horas cruzando o Uruguai até o Brasil. De lá, embarcaram em um jato pequeno que voava abaixo das nuvens, onde mal cabia dentro o baixo de John Patitucci. Wayne Shorter pousou em São Paulo quando o evento já tinha começado, mas não atrasou nem um minuto o horário previsto de sua apresentação. Mesmo depois de mais de dois dias viajando para cumpri-la, como o garoto amador que ele um dia foi viajando nas estradas dos Estados Unidos para tocar na Grande Maçã. (Big Apple é o apelido dado a Nova Iorque pelos músicos de jazz). Ainda assim, alguns espíritos da audiência não tiveram “tempo” para aguardar o show, que começou pontualmente. Tempos de Blackberry, sms, apps e Iphones.

Pois eu conto o que perderam: não testemunharam a alma dos mensageiros do Jazz de Art Blakey e, é claro, o principal compositor do segundo quinteto de Miles Davis que gravou, só pra começar a conversa, os discos “In a Silent Way” e “Bitches Brew”. Uma noite, quarenta e sete anos depois dessa formação começar a deslumbrar o mundo com seu “freebop”. Desde então Wayne Shorter já tocava em sets contínuos e hipnóticos de até 45 minutos, como os apresentados nessa noite, onde o tema flui para o próximo e a melodia surge e some brevemente. O relativamente novo quarteto de Wayne Shorter não fazia isso no início. Recentemente, ele tem levado sua música até os limites da abstração, mas ainda onde o todo faz sentido no desenvolvimento de sua história. É verdade que Danilo Pérez, o genial pianista convoca a todo momento a concentração já vulnerável do mestre. Mas Wayne Shorter ainda é o inquieto garoto capaz de propor um vôo longo e sem referências melódicas que nos limitem entre o teto e o chão.

A história da viagem de Wayne Shorter para participar do BMW Jazz Festival me lembrou uma outra contada por Jerry Seinfeld no seu documentário Comedian de 2002. Seinfeld conta que em certa ocasião, Glen Miller e sua Orquestra viajavam num ônibus, a caminho do próximo show, no meio do inverno rigoroso e de uma nevasca poderosa. No meio da noite o ônibus quebrou e os músicos tiveram que andar, com dificuldade, pela neve, até o lugar programado. Todos vestidos em seus ternos, prontos pra tocar e carregando seus instrumentos pelo gelo escorregadio. No caminho congelado, eles avistaram uma casa, enfeitada com luzes natalinas e uma fumaça saindo pela chaminé. Então, eles olharam pela janela e viram uma família. O pai, uma linda esposa e alguns filhos, todos sentados em volta da mesa, sorrindo, comendo, com a lareira acesa, comemorano aquele natal, farto de presentes. Enquanto isso, os músicos molhados e tremendo de frio, lá fora, assistiam aquela cena digna de um quadro de Norman Rockwell. Aí, um deles vira pro outro e pergunta: Como é que essas pessoas conseguem viver desse jeito?

Felipe Hirsch (O Globo)

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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