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Acordei de um pesadelo e comecei a escrever essa coluna, agora, às 6:47 da manhã. Raramente tenho pesadelos, mas nas últimas noites, quando tenho tentado diminuir minha dose pequena de Rivotril, isso tem acontecido. Passei 8 horas ensaiando a cena da “stoccata” de Rigoletto, e vocês podem imaginar com o que sonhei.

Quando aceitei escrever, semanalmente!, para esse espaço, a intenção dos editores era, além de me dar bastante liberdade, que eu pudesse relatar um pouco dos meus dias e noites criando e ensaiando peças de teatro ou óperas, seja lá o que for e o que eu faça. Eu é que levei as coisas para o outro lado da minha vida. E já contei aqui porque. Quis falar de música porque, de alguma forma, é ela que me liberta desse mundo cruel, difícil, complexo, que a ficção arma ao meu redor (eu voltei ontem à noite, também, da penúltima apresentação de Pterodátilos aqui em São Paulo). É a música que me dá passagem para um outro mundo que vivi, cheio de esperanças, expectativas, amores perdidos pelo caminho, tudo isso lá, naquelas duas décadas vividas em Curitiba. Por isso é dela que escolhi falar. É através dela que resolvi contar “o sabor da minha vida”. A vida real, como cansamos de saber, é dura, a ficcão também e, pelo visto, nem minhas noites me descansam dos meus dias mais.

Portanto não sou, nem desejo ser, um discípulo de Lester Bangs. Nem acabo, como conheço, sendo um desses repórteres musicais que mais parecem focas do mundo bizarro dos tablóides ingleses. Contei que minha missão aqui é dividir minhas paixões e não meus ódios. Tenho feito isso por onde me deixam falar. E porque não faço isso no teatro, meu Deus? Porque esse Rigoletto cínico, ciente de sua maldição de repetir por milhares de anos as mesmas falas, a serviço de duques e contra a burguesia? Não há mais tempo para ser um cínico escrevi, numa noite dessas, por aqui. O amor é mais forte do que o cinismo, repito. É com ele que deveremos lapidar nosso mundo. É com ele que honraremos nosso espaço. É dele que tento me lembrar a cada coluna em que tento despertar a curiosidade de jovens, como eu fui, cheio de esperanças, expectativas, amores perdidos, e enfim, a curiosidade que me fazia buscar as informações sobre o que eu não conhecia, movido pela paixão que a música me despertava.

Hoje, quanto mais trabalho mais me afasto desse mundo. Desse outro lado. Meu mundo real da ficção tomou meus dias e noites. Nem adianta mais lavar da cara a maquiagem de bufão. É claro que luto contra o rapto sanguinolento de minha Gilda. É como se essa personagem da ópera de Verdi pudesse conter todo o mundo que tentei proteger do mundo. Minhã mãe, irmã, casa, mulher, amigos, todos os que falam meu dialeto, todos que sem culpa me fazem sentir culpado, e mal de morte, a cada palavra nativa ou gesto, olhar, cumplicidades esquecidas de seus sentidos. É sobre isso Não Sobre o Amor. Sobre o exílio e a distância de casa. Sobre bichos retirados de seu habitat natural. Sobre perder nossas raízes pelo longo caminho. Sobre as que tentamos encarcerar e não replantá-las. Hoje à noite, no teatro, o Dr. Dráuzio me disse que havia transplantado árvores crescidas. E que na sua idade isso era o mais aconselhável. Como esperar ver crescer de novo? Ri. Ele é consciente. Eu ainda corro atrás da sabedoria, como o personagem de Agora é que São Elas do Leminski. Nem da “exuberância, do transbordamento e do impulso vital”, atribuído a Leminski por Boris Schnaíderman, meu professor, eu passo perto. Mas já disse, é isso que me guia. Mas quando não me suporto, é “la maladie de la mort” a qual se referiu Duras? É mais um período de flashs de irrealização? Crise existêncial? Crise dos 40 anos (27 deles dedicados ao teatro)? Não me vingo. Se há Sparafuciles em meu mundo, não faço uso dos que me recuso a perceber. Não admito precisar disso. Sei que se um dia minha fraqueza o fizer, verei meu mundo mais íntimo, todo, dentro de um saco de cadáveres. Basta “una stoccata, e muor”. Quanto mais guardada nossa vida, mais frágil e delicada ela é. Porcelana oriental pouco usada. Corpo sem resistência. Ninguém pode proteger ninguém do amor que deixa a todos expostos à fúria do mundo. É só com nosso teatro que nos salvamos dele. É uma maldição. Quanto mais o mundo te corrompe, mais você precisa de amor. Quanto mais amor você produz, mais você se sentirá incompreendido. Parece uma língua morta. Mas não é. Você a conhece e lembra em todos os sentidos. Volto a dormir, agora, 9:39. Anna K me espera em algum lugar

Felipe Hirsch (O Globo)

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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