Foto de Alberto Melo Viana
Sérgio Ricardo estréia amanhã em Curitiba. E vem com um show incensado por público e crítica, tangendo limpa homenagem aos setent’anos do poeta Dorival Caymmi. Conjugação de dois artistas enormes, no gesto enorme da fraternidade, essa virtude tola e quase vadia – sempre escassa nos usos e costumes da província obtusa. É que ela, a província obtusa, sendo tribal é por extensão antropófaga. O pintor Nilo Previdi converte-se no exemplo do estigma, e outro pintor, Miguel Bakun, no emblemático intérprete (desafinado?) da dança trágica. Mas esta já é outra história.
Não tendo as pernas de Elba Ramalho nem os berloques dos baianos, Sérgio Ricardo, nem por isso, tem deixado de compor uma admirável trajetória de criador, em terras tupiniquins – com seu talento múltiplo, inquieto e trabalhador. A arte não é decididamente tarefa para preguiçosos.
Junto com o paranaense Carlos Fernando Mazza, no (ainda) sombrio 1977, na barra pesada do Morro do Vidigal, no Rio de Janeiro, há certos trechos da biografia deste filho dos libaneses Lufti, que merecem demorada reflexão. Num tempo em que freqüentar as filas do Instituto de Identificação Félix Pacheco já era uma temeridade, Sérgio Ricardo e o nosso Mazza avançaram favela adentro e compraram, em pleno morro, um barraco que cedo transformou-se numa espécie de prefeitura da Favela do Morro do Vidigal. O que hoje grassa como moda – ou necessidade -, no Rio de Janeiro daquele tempo, significava no mínimo a exposição agressivamente ostensiva à sanha dos órgãos de repressão do regime. A corajosa temeridade de um artista devotado à sua causa. Ou ao seu sonho. Sem o que toda criação será de aluguel.
A experiência já deu num curtametragem, não vinculado em circuito comercial, no qual a aventura do Morro do Vidigal é contada com a exuberância que estas mal-traçadas, por questão de espaço e de talento, com segurança, não alcançarão sequer o treiler. Também o filme certamente jamais conseguirá superar a realidade aflita.
Entretanto, testemunha daquele tempo, em que o horror oficial, ferido de morte, rugia e atacava com a agressividade das feras morituras, dentre tantas uma lembrança me comove.
Numa avenida Niemeyer tomada por blitz cênica e exagerada, os (amedrontadores) tonton-macoutes da chamada “Suate” carioca, tropa de elite da PM de então, reforçados pelos peso-pesados da polícia civil, chegavam, com todas as ferramentas a que tinham direito: da picareta à metralhadora – para iniciar sumariamente a completa demolição dos barracos incômodos – à paisagem e aos interesses da especulação imobiliária dos poderosos.
Carlos Fernando Mazza e Sérgio Ricardo tomaram a liderança da manifestação legítima de resistência, serenando revólveres, porretes, facas e facões dos moradores e procurando, via justiça, o embargo imediato da demolição – diga-se de passagem, já iniciada – o que aumentava a fuma de ambos os lados.
Uma compacta massa de crianças, pivetes e adolescentes defendia todos os acessos à Favela, enquanto Sérgio Ricardo corria em socorro do escritório do exemplar Dr. Heráclito Sobral Pinto – um dos raros advogados brasileiros que não fizeram fortuna à custa de presos políticos neste país incorrigível, diga-se de passagem.
Quando o documento chegou, sustando a ação grotesca de oficiais-da-justiça nervosos e policiais indomáveis, duas dúzias de barracos já tinham sido literalmente postos abaixo. Vitorioso o movimento dos moradores, o exemplo erguido de Sobral Pinto revelou-se mais uma vez em toda a sua altivez: sem cobrar um níquel, o escritório do mais importante advogado brasileiro ainda injetou considerável contribuição financeira para que o trabalho comunitário de Sérgio e Mazza prosperasse.
Agora, Sérgio Ricardo está aí. Alô Caymmi? No Paiol. Dedicando em voz e cordas, acordes de competente beleza, todo axé que merece um legítimo filho de Oxalufam, no completo aniversário do seus setenta anos. Com a doçura de Oxum e o riso bom de um filho de Nana. Sérgio Ricardo, Sarava!
Wilson Bueno