O editor do caderno B do Jornal do Brasil, que era meio fanho, cujo nome vamos deixar de lado, ficou morrendo de inveja do Sebastião, achava que seria ele o escolhido para o posto em Paris. Resolveu infernizar a vida do Sebastião. Ele ainda nem bem havia se instalado na Cidade Luz, quando chegou no telex da sucursal do JB em Paris uma pauta para o Sebastião. “Esperando Godot”, de Samuel Beckett, estrearia sua primeira montagem profissional no Brasil. Antes disso, tinham havido duas montagens, mas com amadores. Alfredo Mesquita, em São Paulo, e Luiz Carlos Maciel, em Porto Alegre, dirigiram a peça. A montagem profissional tinha como atores principais Cacilda Becker e Walmor Chagas, mulher e marido na vida real. Poucos dias depois da estreia, Cacilda teve um AVC em cena aberta. Levada às pressas para o hospital, depois de uma semana, não resistiu e faleceu. O editor do JB queria, simplesmente, uma entrevista exclusiva com o Beckett.
Samuel Beckett, jovenzinho, irlandês de nascimento, havia baixado em Paris para ser secretário de seu conterrâneo já famoso, James Joyce. Joyce manuscrevia seus livros e Beckett datilografava os originais. Bateu na máquina de escrever o “Dublinenses”, “Retrato do artista quando jovem”, “Ulisses” e “Finnegans Wake”. Quando Joyce morreu, Samuel se lançou em carreira solo, como dramaturgo e fez grande sucesso. Escrevia suas peças em francês e ele mesmo traduzia para o inglês. Era o pai do Teatro do Absurdo. Gozava de prestígio mundial. Mas tinha um detalhe: Beckett era o “Vampiro de Dublin”. Jamais havia dado uma entrevista na vida. Sebastião sabia disso, mas estava em busca dos seus primeiros cem dólares. Abriu a lista telefônica de Paris e procurou Beckett, S. Não achou. Foi até o Le Monde e lhe mandaram falar com o editor do caderno cultural. O editor deu risada. Beckett não tinha telefone e tinha horror a jornalistas. Era missão impossível. Em todo o caso, passou o endereço do Beckett. Era numa ruela em Montparnasse, três quadras depois do hotel xexelento onde o Sebastião morava. Ainda deu uma dica: Beckett saía de casa, todo dia, às sete da manhã para ir na padaria.
Como as aulas de cinema eram no período da tarde, Sebastião, antes das seis, estava na frente do predinho caindo aos pedaços, de três andares, que era o endereço do Samuel. Ficou esperando na porta. O porteiro, desconfiado, saiu e perguntou o que ele estava fazendo ali, tão cedo. Sebastião contou o que queria. O porteiro caiu na risada e disse “Monsieur Beckettê nunca deu uma entrevista. Volte para casa e durma mais um pouco”. Sebastião não deu importância, o porteiro voltou para o seu posto.
Exatamente às sete da manhã, um velhinho, com sobretudo preto, por cima do pijama de listras azuis, sandálias de couro e meias de lã bege, boina basca na cabeça e um cachecol seboso no pescoço, saiu pela porta do prédio e tomou o caminho da padaria. Era Beckett, Sebastião reconheceu pelas fotos que havia visto no Le Monde e resolveu esperar pela volta. Minutos depois, Beckett retorna pela rua, debaixo do braço uma baguette não embrulhada e na mão uma garrafa de leite. Sebastião se apresentou. Beckett, que estava de bom humor, olhou pro Sebastião, não disse nada e entrou no prédio. Por quase vinte longas manhãs a cena se repetiu. Num dia, o Beckett apenado com o Sebastião, que amanhecia ali no frio, quando voltava da padaria, olhou para o nosso intrépido repórter e lascou: “O senhor vai acabar pegando uma pneumonia. Hoje à noite vou jantar com um casal de amigos. Ele fala um pouco mais que eu. Ela fala pelos cotovelos. Esteja aqui às dezenove horas em ponto. Eu não vou esperar. Não traga gravador, só bloco de anotações e caneta. Guarde tudo o que ela vai falar na memória e terá uma boa matéria para seu jornal no Brasil.
Antes do horário marcado, Sebastião estava de plantão. Beckett desceu exatamente às dezenove e sem falar nada fez um sinal com a mão para que Sebastião o seguisse. Foram até um bistrô ali perto, Samuel pediu uma mesa para quatro e ficaram esperando, um olhando para a cara do outro. Nenhuma palavra de cada lado. Minutos depois, chegam Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Samuel Beckett ainda perguntou se não se importavam com a presença do jornalista brasileiro. João Paulo e Simone disseram que não. Durante o jantar, só Simone falava. Sartre soltava, de vez em quando, um oui. Beckett, entre uma garfada e outra no bouef bourguignon, fazia um sinal afirmativo com a cabeça. Sebastião, de orelhas em pé, escutava tudo e procurava guardar na memória cada palavra da Simone. Ficaram horas no bistrô, até que o garçom, com a educação típica dos garçons parisienses, não se importando com quem eram, disse que iria fechar e que fossem embora. Saíram e ficaram esperando o táxi que Sartre havia pedido para o gerente chamar. Com muita má vontade, o cara fez o favor. O táxi chegou e o Sebastião, por gentileza, acompanhou Beckett até o prédio dele. Na porta, Sebastião agradeceu com grande ênfase. Beckett nem respondeu e entrou no edifício. Apesar de estar a três quadras do hotel em que morava, Sebastião conseguiu outro táxi e foi para a sucursal do JB em Paris. Começou a escrever a matéria enquanto ainda se lembrava das falas de Simone de Beauvoir. Terminado o texto, foi pro telex e mandou a matéria para o Brasil.
O editor do caderno B pegou a matéria e foi correndo para a sala do Dines. Disse que o Sebastião era um irresponsável, um malandro, um desqualificado. Pediu uma entrevista com Beckett e ele mandou uma com a Simone de Beauvoir. Dines, que já havia percebido a inveja do cara, mandou ele calar a boca e começou a ler o texto. Terminada a leitura, olhou para o editor e disparou: “Deixa de ser imbecil e invejoso. Até o pipoqueiro da Central do Brasil sabe que o Beckett nunca deu uma entrevista. O Sebastião conseguiu uma matéria sensacional. Vá no arquivo, procure a mais perfeita foto da Simone, pegue o melhor diagramador e dê como capa no caderno B de domingo. E não me venha mais encher o saco”. O editor ainda não tinha saído da sala e o Alberto Dines, ao telefone, mandava o departamento de pessoal acrescentar cem dólares no pagamento do Sebastião França.
Na semana seguinte, o editor do B, ainda com mais inveja, e puto com o esporro que tinha levado do Dines, mandou outro telex para a sucursal parisiense do JB. Queria uma entrevista com Eugène Ionesco. Ionesco era um romeno filho de mãe francesa e pai nascido no país do Conde Drácula. Era o outro papa do Teatro do Absurdo. Sebastião foi na lista telefônica de Paris e nada de Ionesco, E. Tomou o rumo do Le Monde e o editor do caderno cultural caiu de novo na risada. O “Vampiro de Bucareste” era outro que jamais havia dado uma entrevista. Sabendo da façanha do Sebastião França com o Beckett/Simone/Sartre, voltou aos seus alfarrábios e não encontrou nem o endereço do Ionesco. Pediu desculpas, mas disse que desta vez não podia ajudar. Sebastião de olho em mais cem dólares, foi até a Notre Dame e pediu a intercessão da Virgem Maria por um milagre de Deus. Nossa Senhora lhe atendeu parcialmente. Dias depois, chegando na sucursal do JB pela manhã, abriu o Le Monde e começou a ler. Lá pelas tantas, havia uma discreta nota dizendo que Ionesco, atendendo a um pedido do sacerdote da Igreja Ortodoxa Romena de Paris, proferiria uma conferência nas dependências da mesma sobre “A Existência de Deus”. Sebastião anotou dia, horário e endereço. Foi lá. A Igreja estava lotada com gente de todos os credos. Todos queriam ouvir o Ionesco. No horário marcado, o sacerdote e o Ionesco entraram na nave. Feitas as apresentações o sacerdote passou a palavra a Ionesco. Eugène agradeceu o convite e fez a sua conferência: “Senhoras e Senhores, boa noite. Depois de cinquenta anos da mais profunda reflexão espiritual, cheguei à conclusão de que Deus, realmente, existe. Muito obrigado pela presença de todos. Boa noite e fiquem com a Paz do Senhor”. Levantou e saiu por uma porta lateral e sumiu pela noite de Paris. Sebastião ficou sem os cem dólares.
Em 1970, com o Sebastião terminando o curso de cinema, Eugène Ionesco foi eleito membro da Académie Française. Falou pelos cotovelos na coletiva, Sebastião estava lá e faturou mais cem dólares. Ionesco, quando morreu, foi enterrado no cemitério de Montparnasse. Morava distante quatro quadras do Sebastião, mas em Paris só o Beckett, que havia falecido cinco antes, sabia do endereço. A vida de Sebastião corria bem em Paris, mesmo com o fdp do editor do Caderno B. De manhã, trabalhava na sucursal do JB. De tarde, ia pro Instituto, onde assistia, com grande atenção, às aulas. Os professores deixavam os alunos mexerem com as câmaras, microfones, holofotes etc. De noite, perambulava pelos bares de Montparnasse. Num deles, apresentado por amigos comuns, conheceu uma francesinha. Foi amor à primeira vista. No final da noite, início da madrugada, enquanto a francesinha foi buscar seus pertences em outro hotel da região, o Sebastião providenciou a mudança para um apartamento maior no mesmo hotel xexelento. Semanas depois, a francesinha fez o comunicado solene: estava grávida. Sebastião ficou radiante. Quase nove meses depois, nasceu o rebento. Sebastião foi no registro civil da prefeitura de Paris e registrou o piá: Sébastien França. O oficial do registro achou engraçado o sobrenome do mais novo parisiense, nunca tinha anotado alguém com o sobrenome do país. Sebastião também foi no consulado brasileiro para registrar o guri. Lá lhe explicaram que como Sebastião não era casado oficialmente pela lei brasileira, o menino teria que ser registrado como filho ilegítimo, segundo os termos do Código Civil de mil novecentos e bolinha. A palhaçada, no Brasil, só acabaria com a Constituição de 1988, que aboliu a ridícula classificação de filhos legítimos, ilegítimos, adotados, etc, que tanto sofrimento causou a milhões de brasileiros. Filho, desde outubro de 1988, é filho e ponto final. Ao saber da má notícia, Sebastião desistiu de registrar o filho como brasileiro. O piá cresceu só como francês mesmo.