A ambição de Putin é restaurar a Grande Rússia, começando pelo núcleo com Belarus e Ucrânia
“É tudo culpa de Lênin”, pontificou outro Vladimir, Putin, no sinistro discurso que pronunciou na TV russa anunciando o reconhecimento da independência dos enclaves separatistas do Donbass. O líder da Revolução Russa teria fabricado a Ucrânia, privando a Rússia de seu berço cultural. A história putínica é lenda destinada a justificar uma guerra de agressão, mas ilumina um dilema de cem anos.
Nas suas linhas gerais, o mapa atual da Europa foi desenhado pelos tratados que encerraram a Grande Guerra, entre 1918 e 1920. Sob o impacto dos nacionalismos e do programa de Woodrow Wilson, nasceram os Estados-Nação.
As novas entidades, supostamente ancoradas na língua e na tradição, foram esculpidas a partir das ruínas dos impérios que desabavam. Desapareceram os impérios Alemão, Austro-Húngaro e Turco-Otomano. Contudo, graças ao triunfo dos revolucionários bolcheviques, sobreviveu o Império Russo, apenas convertido na URSS. “Império vermelho”, mais que uma expressão retórica, é a descrição precisa da conservação de um fóssil no permafrost do Estado soviético.
Nada, porém, atravessou impunemente a era dos nacionalismos. O tema nacionalista infectou o pensamento comunista, condicionando a organização política do “Império vermelho”. Lênin, o danado, criou uma união de 15 repúblicas nominalmente soberanas. Nesse sentido específico, Putin fala a verdade.
De fato, claro, o Estado soviético era uma entidade centralizada: uma constelação que girava ao redor da Rússia, ou melhor, do PCUS. Não é por acaso que cada república tinha seu próprio partido comunista, menos a Rússia. O partido único russo era o PCUS, centro intocável do poder. Mas, ironicamente, a soberania fictícia das repúblicas soviéticas propiciou, no final de 1991, o fundamento jurídico para a criação dos 15 Estados pós-soviéticos, entre os quais a Ucrânia.
A história putínica, fixada em Lênin e na implosão da URSS, ignora o nacionalismo ucraniano. Como todas as narrativas nacionais, ele ergue uma “comunidade imaginada” cuja inspiração remonta ao proto-Estado militar cossaco (Zaporozhian Sich) que, entre 1552 e 1775, conservou uma relativa autonomia diante de poloneses, otomanos e russos.
Na saga nacional ucraniana, ocupa lugar de destaque o Holodomor, o extermínio pela fome de mais de 3 milhões provocado pela coletivização forçada soviética em 1932-33, que reacendeu a chama antirrussa. O termo genocídio, hoje capturado por oportunistas diversos, inclusive Putin, define adequadamente a tragédia emanada daquele experimento de engenharia político-social. A revolução popular na Ucrânia, em 2013-14, que está na raiz da invasão russa em curso, evidenciou a persistência do nacionalismo ucraniano.
A expansão da Otan para leste, um erro histórico do Ocidente, não é a causa da invasão russa, mas o pretexto encontrado pelo chefe do Kremlin. A hipótese de candidatura da Ucrânia à aliança ocidental foi congelada desde a ação militar russa de 2014. O real motivo da invasão foi exposto por Putin, no discurso em que rejeitou a legitimidade de um Estado ucraniano soberano. Sua ambição é restaurar a “Grande Rússia”, começando pelo núcleo tripartite Rússia/Belarus/Ucrânia. O Império Russo —preservado sob a forma de URSS no final da Grande Guerra e quase arruinado em 1991— tenta se reconstituir por meio de uma capitulação versalhesa da Ucrânia.
Nossa Constituição determina que, nas suas relações internacionais, o Brasil rege-se pelos princípio da “independência nacional”, da “autodeterminação dos povos”, da “não-intervenção” e da “igualdade entre os Estados”. O Itamaraty passou os três dias decisivos recusando-se a condenar a invasão russa. Nesse passo, Bolsonaro convergiu com Dilma Rousseff, que rejeitou condenar a anexação russa da Crimeia em 2014. São governantes que sabotam nosso contrato político.