Reencarnação

Odisseia não passa da história de alguém querendo voltar para a paz dos braços da patroa

Platão encerra a sua República com a descrição que Sócrates faz dos heróis de Homero escolhendo suas vidas futuras, ou os seres que suas almas habitarão depois da morte. Orfeu escolhe voltar como um cisne, Ajax, um leão, Agamemnon, uma águia. Muitos preferem reencarnações de acordo com seu passado. O corredor Atalanta, por exemplo, quer voltar como atleta. O construtor do cavalo de Troia quer ser uma artesã, com o mesmo ofício, mas outro sexo. Um bufão escolhe voltar como macaco. Ulisses prefere voltar como um homem comum. O herói maior da Odisseia escolhe para o futuro da sua alma ser um animal simples, um anti-Ulisses que nenhuma aventura tirará de casa.

Quem acredita em reencarnação e pesquisa sobre suas vidas passadas geralmente descobre que foi, senão um herói homérico, nunca menos do que um faraó, uma rainha ou um artista famoso. Ninguém admite ter sido um bandido ou uma faxineira em Versalhes. E todos têm um consolo para a sua atual condição: não passam de uma etapa, uma alma em transição entre um grande personagem e outro, fazendo estágio como apenas ele. O mito socrático introduz a ideia de que podemos escolher nossa próxima vida (primeirão massagista de miss!), mas o que fascina é a opção de Ulisses pela mediocridade confortável, a pacatez como um refúgio seguro.

Ulisses não quer ser mais ninguém, quer ficar a salvo da vida e da História. Ao contrário de quem não se conforma de não ter sido alguma coisa mais do que é, em algum lugar do passado, ele opta por não mais ser nem Ulisses, nem coisa parecida, no futuro.

Afinal, toda a Odisseia não passa da história de alguém querendo voltar para a paz dos braços da patroa.

CUIDADO

A ideia da reencarnação das almas provoca algumas considerações interessantes. Quem acredita mesmo em reencarnação deve ter extremo cuidado no trato com insetos, por exemplo. O próximo mosquito que matar pode ter sido um parente. A crença em reencarnação determina cuidados, também, com a dieta alimentar. A pessoa não pode comer carne de espécie alguma, pois quem assegura que o boi sacrificado para fazer o bife não foi, em outra geração, o tio Olavo? Haveria casos de a degola de uma galinha ser interrompida porque alguém vê traços de alguém na sua cara (“Parem! Parem! É a tia Elvira!”). Enfim, o respeito aos antepassados seria total, mesmo que tivessem voltado como porcos.

*Crônica originalmente publicada em março de 2017.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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