O que pode acontecer é um candidato de esquerda vencer e governar com um Congresso de maioria conservadora. Na semana passada, tive pouco mais de 20 minutos para concluir meu artigo sobre as eleições. Era preciso conciliar o resultado ainda nebuloso com o limite para a entrega do texto.
Foi pouco tempo para entender tudo. Na verdade, até agora ainda existem zonas escuras, à espera de alguma luz que talvez só nos ilumine, plenamente, em 30 de outubro, data da votação em segundo turno.
Na terça-feira, numa entrevista ao jornal português Expresso, já pelo menos percebia algo: a frustração causada pelo resultado era superior ao que a realidade autorizava.
O problema central: todas as previsões foram baseadas nas pesquisas. Quando a realidade desmentiu parcialmente as pesquisas, em vez de aceitá-la, a tendência foi lamentar a perda de uma ilusão e subestimar as possibilidades da situação tal como ela era.
É inegável que o bolsonarismo avançou, elegendo senadores, dando votações espetaculares a ex-ministros que tiveram péssima atuação, como Eduardo Pazuello, na Saúde, ou Ricardo Salles, no Meio Ambiente.
A reação inicial foi afirmar que o Brasil é um país conservador. Aceitaria a expressão se fosse acompanhada do advérbio “majoritariamente”. É um país conservador, mas o candidato que defendeu políticas sociais mais amplas chegou à frente, com 6,2 milhões de votos de dianteira. Em alguns casos, São Paulo, Brasília (votação distrital) e Espírito Santo, candidatos de esquerda foram campeões de voto. Quatro índias foram eleitas para o Congresso, duas mulheres trans, 19 deputados LGBTQIA+.
Apesar da fidelidade de seu eleitorado, Bolsonaro ainda sofre a rejeição da metade do país, e isso pode selar sua sorte no segundo turno.
O que pode acontecer é a eleição de um candidato de esquerda que governe com um Congresso majoritariamente conservador. Mas não é algo novo, apenas dependerá de capacidade de negociação superior e respeito aos princípios republicanos.
Creio que também é simplificar demais dizer que foi uma eleição que opõe Sul e Sudeste ao Nordeste, ou pessoas de baixa renda e as mais bem pagas. Não é correto dizer que apenas os mais pobres votam a favor de uma política social. O que existe são alianças entre diferentes camadas, visões de mundo divergentes. Se apenas a prosperidade social determinasse o perfil de um país, como explicar que nos Estados Unidos republicanos e democratas se sucedam no poder?
Há sempre um choque entre as pessoas que veem no mérito um valor absoluto e as que compreendem a importância da solidariedade para manter o tecido social coeso. Não é necessário opor socialismo ao capitalismo. Em muitos lugares, como São Paulo, o impulso empreendedor é muito forte. É preciso contar com essa variável.
Da mesma forma, toda a polêmica sobre a população evangélica ganharia qualidade se não fosse apenas um tema de eleições. É preciso convivência cotidiana, proximidade para entender e interpretar os anseios desses fiéis, muitos vindos do interior para a vida difícil da periferia dos grandes centros.
Mesmo aceitando a ideia de que o Brasil é um país majoritariamente conservador, é preciso integrar também sua complexidade e acreditar que, no que depende de políticas sociais, a aliança progressista é vencedora e, possivelmente, será com mais frequência do que nos Estados Unidos.
A principal conclusão, mesmo antes do resultado final das eleições, continua válida: o ano que vem será difícil, não só pelos problemas econômicos, crise energética, eventos climáticos extremos, mas também porque ainda discutiremos algo que parecia sepultado para sempre: o perigo de um conflito nuclear.
O mínimo de sensatez nos convida a baixar a bola e enfrentar a nova fase com uma visão construtiva, sem ódio e radicalização artificial, porque numa conjuntura tão ameaçadora é preciso, pelo menos, economizar dificuldades.