Carta para Raquel (1) – primeira parte

RICORDO DI RAQUEL DIAS DA SILVEIRA MOTTA

Minha amada e amantíssima esposa:

Já deveria ter escrito depois de ter voltado da Itália, onde estive em Palermo, para receber a homenagem que a “Associazione ítalo-brasiliana dei professori di diritto amministrativo e constituzionale”, que você fundou com Maria Immordino, Nicola Gullo, Cristiano Celone e Estefânia Maria de Queiroz Barboza, lhe prestou no Congresso que é organizado a cada dois anos, revezando entre a Itália e o Brasil.

Acontece que, quando cheguei, o Bruno estava na semana de provas e eu estava esperando as notas que ele tirou para lhe dar notícias mais atualizadas. Pelo terceiro bimestre seguido, todas as notas dele foram superiores à média, razão pela qual acho que ele não vai pegar exame final em nenhuma disciplina. A grande surpresa é que as notas dele em inglês são superiores as da Língua Portuguesa, contra a qual ele tem algumas broncas. Dia desses, me disse que o “agá” não tem nenhum sentido, já que não possui som algum. Para ele, hotel deveria ser “otel” e ponto final. Hoje, depois do almoço, invocou com o “w” e o “y”, dizendo que não entendia porque eles existiam já que temos o “u” e o “i”. “O tal português é muito complicado”, foi o que sentenciou, com toda a razão.

O Congresso em Palermo foi maravilhoso. Maria Immordino recebeu uma linda homenagem quando do lançamento do livro em homenagem à sua docência. São quatro volumes, com inúmeros professores italianos e brasileiros. Nosso artigo, o último que escrevemos juntos, está lá. Nicola Gullo e Cristiano Celone continuam, assim como Maria, pessoas fantásticas, que você colocou em minha vida. Cristiano inclusive, durante a sua conferência, quando citou você, embargou a voz, chorou e não conseguiu concluir sua fala. Nicolletta, a esposa de Cristiano, continua sendo outra pessoa maravilhosa. Inclusive nos receberam na linda casa de praia e nos apresentaram os pais de Cristiano. Depois do almoço, Mara, esposa do desembargador e professor Clayton Maranhão, em conjunto com o Alfredo Contieri, começaram a cantar Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Toquinho e Andrea Bocellli. Enquanto cantavam Bocelli eu recordei o concerto dele que assistimos juntos e chorei, como chorei.

Giulia Torta, que você conhece tão bem, foi incansável na organização do evento, tendo ao seu lado um jovem queridíssimo, chamado pelos italianos de Francesquino, que está escrevendo uma tese de doutorado sobre “Direito Administrativo e o combate à máfia”. Conheci, também, pessoalmente, Caterina Ventimiglia e Marco Ragusa, de quem você sempre falou maravilhas. É verdade, são duas pessoas maravilhosas. Reencontrei também os amigos Fabricio Fracchia, Alfredo Contieri e Francesco Manganaro, que você também colocou em minha vida.

A sua homenagem ocorreu logo depois da abertura solene do Congresso, de modo que estavam presentes os reitores da Universidade de Palermo, da Libera Universidade Maria Santíssima, do prefeito de Palermo, do presidente da Região Siciliana, do presidente da Assembleia Legislativa da Sicília, do presidente da Associação de Professores de Direito Administrativo da Itália, da cônsul honorária do Brasil em Palermo, e foi presidida pela Estefânia. Nicola fez um lindo discurso rememorando toda a sua vida acadêmica e profissional e a sua essência como integrante da espécie humana. Após, em fiz um discurso em italiano, cuja tradução devo ao professor Domenico, que dá aulas de italiano para a sua amiga de Uberaba Ana Isabel Tiveron.

Quando terminei, todas as autoridades antes citadas, mais de 50 professores italianos e mais de 15 professores brasileiros, aplaudiram-lhe de pé, enquanto Maria me entregava um lindo papiro onde seu nome está imortalizado. Muitos choravam. Eu também. Demorei mais de 30 minutos para deixar o recinto, tantos eram os fraternos abraços e beijos que só os italianos sabem dar.

Na saída, fui até a Igreja de Santa Maria de Jesus de Palermo onde repousa São Benedito, que, junto com Santa Rosalía, de quem você se tornou devota, são os padroeiros de Palermo. Sentei próximo do túmulo de São Benedito e chorei por mais de uma hora de saudades de você, pedindo ao Mouro que me dê forças para criar o Bruno e a sua proteção eterna ao nosso amado filho. O Santo Negro, filhos de escravos, frei franciscano, analfabeto, que se tornou superior dos franciscanos na Sicília e quando deixou o cargo de superior voltou, humildemente, a ser cozinheiro do mosteiro, tarefa que lhe deram quando ali chegou.

Na saída da Igreja, como você já sabe, Jesus apareceu de novo. Em homenagem a São Benedito, tenho certeza, era um africano, com roupas em estado lamentável. Dirigiu-se a mim e pediu, olhando nos meus olhos, com grande humildade, “dammi una moneta cosí posso mangiare”. Eu lhe dei 10 euros. Ele agradeceu e disse: “Pregheró per te. Como ti chiami?” Eu respondi: “Non pregare per me. Prega per mio figlio Bruno che diventi um Uomo come sua madre voleva che fosse”. O africano então começou a subir os degraus da Igreja, parou, olhou para trás e me disse: “Pregheró per Bruno”.

Voltei para o hotel e antes de entrar sentei num bar. Pedi uma garrafa de um branco siciliano (que você com razão disse serem os melhores do mundo), uma água sem gás e dois cálices. O garçom, que era trans, perguntou se vinha mais alguém. Eu disse que já estávamos em dois, eu e Raquel e apontei para a aliança que ainda conservo na minha mão esquerda. Ele, ou ela, tanto faz – que seja feliz para todo o sempre –, perguntou quando você havia nos deixado. Respondi que no dia 31 de março de 2022. Tomei, alternando os cálices, a garrafa inteira. Às vezes, caiam lágrimas e o garçom me olhava e dizia: “Piangere è buono, fa bene all´anima”.

Cambaleando, voltei ao Congresso e assisti ao restante das conferências.

No domingo fomos a Mondelo, praia que você tanto amava. Como estava de bermuda, entrei na água até os joelhos.

Amanhã, apresento a versão para o português do discurso que fiz.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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