Fodilhança

Jorge Amado, no seu “Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei”, relembra o Primeiro Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em São Paulo, em 1945, já nos estertores da ditadura do Estado Novo. O DIP não conseguiu segurar a onda, e as discussões dos escritores brasileiros, vindos de todos os Estados, tomavam as manchetes dos jornais. Para muitos historiadores, tal Congresso foi o pontapé inicial para a derrubada do Estado Novo e de Getúlio Vargas.

Jorge Amado, segundo suas próprias palavras, liderava a representação baiana e a dos escritores comunistas. O “pecê” (é assim que ele se refere ao PCB durante todo o livro) mandou um membro do seu Comitê Central que se reunia toda noite com Amado para lhe “repassar as diretrizes do Partido”. Jorge Amado, que só romperia definitivamente com o “pecê” depois das denúncias dos crimes de Stálin, obedecia cegamente.

Ocorre, entretanto, que depois de gastar dois parágrafos sobre o Congresso, Jorge sai com essa:

“Fora das sessões plenárias e das comissões era festa e que festa! Ininterrupta, delirante, as rédeas soltas. Coquetéis – recordo animadíssimo coquetel em casa de Nelson Palma Travassos, cronista bem-humorado, dono da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, anfitrião rico e amável, onde reparei em Zélia (Gattai, acrescento eu, 2ª esposa de Jorge Amado e notável escritora) pela primeira vez -, festinhas, danças improvisadas, bate-coxas animados, comilanças, beberanças e, acima de tudo, a boa fodilhança: como se fodeu nesse Congresso, inimaginável! Vinícius de Moraes, galã de cinema, ia de mão em mão, melhor dito de xoxota em xoxota. Tampouco posso me queixar”.

Pode parecer estranho, ao leitor não familiarizado com a literatura de Jorge Amado, que ele, ao rememorar um dos episódios mais importante da história do Brasil, tenha escrito mais sobre a fodilhança e as xoxotas do que sobre o aludido Congresso. Mas em outra passagem do mesmo livro, Jorge abre o jogo e não esconde quem é:

“Romancista de putas e de vagabundos, classifica-me com menosprezo um graúdo da crítica literária. A classificação me agrada, passo a repeti-la para definir minha criação romanesca.

“Gosto da palavra puta, simples e límpida, tenho horror aos termos prostituta, marafona, pejorativos e discriminatórios. Em três palácios de governo relembrei que sou apenas um romancista de putas e de vagabundos, colocando o acento na palavra puta, com júbilo. No Palácio do Planalto, em Brasília, na cerimônia da criação por José Sarney, então presidente da República, da fundação cultural que leva o meu nome. No Palácio do Conselho de Estado, em Sófia, na Bulgária, ao receber o prêmio Dimítrov. No Palácio de Belém, em Lisboa, quando o presidente Ramalho Eanes me retirou da condição de ‘escritor maldito’ e me entregou a Ordem de Santiago da Espada. Em toda circunstância, a meu lado, as putas e os vagabundos”.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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