Isto não é uma baleia

Acusar o filme de Aronofsky de gordofobia é ignorar que a arte não é cartilha moral nem panfleto político

Em “A Traição das Imagens”, de 1929, o belga René Magritte pintou um cachimbo com a frase “Ceci n’est pas une pipe” (“isto não é um cachimbo”). O aparente paradoxo é uma reação ao racionalismo que identifica a imagem de uma coisa como a coisa em si: a pintura de um cachimbo não é o cachimbo que foi pintado.

A mensagem é desconectar a arte do funcionalismo pedagógico, moral ou referencial (à realidade política e social). Uma pintura é um reino próprio, governado pelas próprias leis. A estética é a rainha.

Contudo, passado um século, abundam críticas para as quais a arte é cartilha moral ou panfleto político, como várias sobre o filme “A Baleia”, de Darren Aronofsky.

Charlie, o protagonista, tem obesidade mórbida (pesa 270 kg), um ex-namorado que se matou e uma filha adolescente com quem tenta se reconciliar, após abandoná-la para viver a paixão que findou em tragédia.

Parte das críticas acusam o filme de gordofobia. Ao retratar Charlie numa casa suja e escura, se lambuzando de comidas ingeridas com sofreguidão, transmitiria-se a ideia de que gordos são repugnantes, estimulando o preconceito que enfrentam.

Ora, mas isso seria dizer que o filme “Despedida em Las Vegas”, sobre um alcoólatra suicida, é preconceituoso. Nem todo mundo que bebe é alcoólatra, nem todo gordo é obeso mórbido. Tratam-se de relações obsessivas —atestadas pela ciência— com objetos que nos cercam, seja uísque, pizza, pôquer ou sexo.

“A Baleia” não é sobre a comunidade gorda ou adicção. É sobre a angústia existencial relativa às contradições entre corpo, mente e normas culturais, que Freud descreve em “O Mal-Estar na Civilização”: o homo sapiens teve de reprimir seus instintos naturais para alcançar todas as conquistas culturais da humanidade.

No entanto, constantemente, sentimos o fardo dessa troca, seja ao reprimir desejos ou segui-los cegamente. Esse é o peso que Charlie carrega, representado na arte pelo seu enorme corpo. Ou seja, a baleia não é uma baleia.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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