Não sei até que ponto se pode confiar na memória gustativa, principalmente em se tratando de sensações antigas de várias décadas. Mas deve haver no nosso cérebro um “canto das lembranças” onde esses sabores ficam armazenados – e basta um leve toque para revelar “o edifício imenso da memória”, segundo Proust e sua madeleine.
Os sabores a que me refiro nessa postagem têm, por baixo, mais de setenta anos de idade – mas me chegam com muita clareza, embora um pouco, evidente, neblinosos. Os familiares poderão, talvez, precisar um pouco melhor – mas não há razão para incomodar Tico & Teco neste momento.
Estou certo de que são memórias do tempo em que minha avó tinha uma pensão na Rua José Loureiro – e, como piá muito novo, menos de cinco anos, evidente que os registros caíam num HD vazio, limpo, sem vírus… Não me ficaram apenas os sabores aos quais me refiro no presente texto, mas nesse momento, são os que penso registrar.
As receitas – o melhor, os preparos tradicionais – sempre me interessaram, mesmo antes do interesse acadêmico pela História da Alimentação. Cardápios são documentos preciosos, alguém poderia fazer com eles o que Norbert Elias fez com os manuais de boas maneiras: como contribuem para construir o que entendemos por civilização? Claro que falo de civilização no sentido desse autor, cultura, não baboseira internética.
Então, pedir um prato em restaurante implica numa olhada preliminar – o garçom que se impaciente, se quiser – no total do conteúdo. Mesmo em locais onde os pratos estão gurmetizados, me chama atenção quando encontro algumas alternativas que evocam o desconhecido – sempre aquele gostinho de viver perigosamente… – ou, pelo contrário, alguma lembrança positiva. Nada contra comida gurmetizada, evidente, mas certos preparos muito simples resultam em prazeres muito intensos.
O cenário é uma antiga vila de pescadores do litoral de Santa Catarina – já se vê, condenada pelo imobiliarismo descontrolado e globalizante, rolo compressor de qualquer cultura regional. A comida aí sempre foi simples e saborosa, imagino que muito comum no litoral brasileiro: arroz (com colorau…), feijão, peixe frito e farinha de mandioca ou pirão. Muito comum, molho de camarão que, por motivos de alergia, nunca experimentei. Mas esse básico, repetido diariamente ao longo de anos, adquire um saber e um sabor nos detalhes capaz de compensar a invariabilidade.
Foi o que me surpreendeu de cara: onde já se viu restaurante servindo PF com carne-de-panela, picadinho e bife-à-rolê?! Experimentei e não consegui partir para as demais opções entre as quais, os abomináveis hamburguers do agrado da juventude facebuquista. Que, se não forem submersos em temperos fortes – e geralmente também ruins – terão gosto de rolha.
Mas o assombroso nos pratos mencionados era sua fidelidade aos preparos, e evidente que também aos sabores, dos que minha avó servia em sua pensão. Os truques culinários devem ser os mesmos!!! Dá prá imaginar alguém dotado do meu padrão de teimosia, e que tenha experimentado um preparo muitas vezes, até chegar perto do arquivado. Fiz isso com outro acepipe, a posta-branca…
Como assim?! Desde quando língua e papilas gustativas têm uma memória tão precisa?! Não sei – num pensamento mais aprofundado de aluno de História das Idéias, já não da Alimentação, aquela senhora da pensão da rua José Loureiro, tinha no DNA algumas informações gastronômicas que sobreviveram na cozinheira do tal lugar. Ambas as senhoras, vinculadas à tradição açoriana.
Talvez a explicação seja mais simples e mais desengraçada do que isso – mas os pratos mencionados são, para mim, viagem no tempo, sabor de infância, cheiro de terra molhada pela chuva…
Como não faço propaganda nesse blog, a quem tiver interesse, podemos indicar como programar o GPS.