A arte é inútil, ainda bem

Exigir que a arte cumpra uma missão social ou política leva à pobreza estética

Polêmicas vêm e vão como ondas no mar. Uma que sempre volta é acusar algum livro de racismomachismo etc. Agora é “Moby Dick”, de Herman Menville. O youtuber Felipe Neto leu, não gostou, disse que o livro é racista e perguntou: “O que fazer?”. Ora, o livro não é racista, mas, se não lhe agrada, pare de ler. Só que a pergunta de Felipe não é pessoal. Ela sintetiza uma perspectiva funcionalista sobre a arte, que tende a solapar a estética e cobrar uma ação social.

Ou seja, a arte é vista como meio útil para se alcançar um objetivo político. Mas, parafraseando Oscar Wilde, a única coisa que a arte deve ser é inútil. O grande artista cria porque não consegue fazer outra coisa e não porque tem um dever a cumprir. Geralmente, a arte criada só para cumprir função social tende à pobreza estética. Por quê? Porque a forma sempre terá de se curvar ao conteúdo.

Se a arte tem alguma função social, seria apenas a de nos inocular contra a violência e tragédias humanas, mas não pelo didatismo, e sim pelo contato: lidar com o preconceito na ficção nos prepara para o preconceito na vida real. Por isso, tentativas de cancelar escritores, livros, de cortar trechos de livros nos tornam humanos mais frágeis.

Uma forma brilhante de tratar a arte como inoculação foi usada pelo humorista judeu Lenny Bruce. “Nigger” é um termo extremamente pejorativo para se referir aos afrodescendentes nos EUA e Lenny fez um esquete em que falava não apenas “nigger” como outras gírias preconceituosas contra judeus (“kike”), latinos (“spic”), italianos (“wop”) e irlandeses (“mick”).

Constatando que estava prestes a ser agredido pela plateia, Lenny esclarece: “É a supressão da palavra que lhe dá o poder, a violência. Se ouvíssemos ‘nigger, nigger, nigger’ em todo lugar até não significar mais nada, então, seria impossível fazer um garoto de seis anos chorar porque foi chamado de ‘nigger’ na escola”. A arte não espalha o vírus do preconceito. Ao contrário, é nossa vacina contra ele.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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