A desgraça do vestibular

Já disse aqui e repito sempre que me é possível: odeio os vestibulares. São obras do demônio, verdadeiras máquinas moedoras de cérebros, que todos os anos assustam jovens e arrasam vocações. Aprendi com o meu querido Rubem Alves, que teve a experiência de professor da Unicamp e foi educador de nomeada a vida inteira, com especialização em jovens, que “os vestibulares são um desperdício de tempo, de dinheiro, de vida e de inteligência”. E, exatamente por isso, “a maior praga que infesta a educação brasileira”.

O menino ou menina passa a vida toda estudando para enfrentar essa maratona inútil e safada. Quer ser médico, engenheiro, advogado, dentista, professor, arquiteto, jornalista ou fisioterapeuta. Tem talento para isso, quer aprender para exercer a profissão com eficiência e bons resultados. Quer servir à coletividade e ao país. Ser útil ao semelhante no seu campo de atividade. Construir a sua vida, formar uma família e ser feliz na medida do possível, enfim. Mas tem de ultrapassar o maldito vestibular. Aí, os sonhos vão se dissolvendo e perdem-se no meio do caminho.

Durante o ano todo, em doses diárias duplas e até triplas, os adolescentes vão armazenando conhecimentos e informações desnecessárias e até mesmo estúpidas. Só para enfrentarem a disputa de fim de ano. Passados os exames, como acentua Rubem, “a memória se encarrega de esquecer tudo, porque a memória não carrega peso inútil”.

No meu tempo, era diferente. E nem por isso menos difícil e disputado. Mas ia-se ao âmago da questão. Pretendia-se estudar Direito, formar-se advogado? Então, submetia-se a testes de português, de literatura e gramática portuguesas, de latim e de uma língua estrangeira. Depois, acrescentou-se conhecimentos gerais. Hoje, com a “reforma” instituída pela ditadura militar e mantida pelos governos ditos democráticos, tritura-se os jovens. Almeja-se ser advogado ou engenheiro, mas deve-se dominar física, química, biologia e coisas que tal. Se a pretensão for ser médica, também terá de estar afiada em literatura, história, filosofia, matemática e até sociologia.  

Se, nesta altura da vida, eu fosse submeter-me ao tal exame vestibular, certamente seria reprovado. Como também seriam o ministro da Educação, os reitores das universidades e até mesmo os professores dos cursinhos pré-vestibulares.

Rubem Alves contava que, certo dia, topou com a neta lendo um livro de biologia. Devia estar-se preparando para o vestibular. Mas não viu nenhum entusiasmo no rosto dela. Apenas uma expressão de tédio. Quis saber por que. Ela indicou-lhe, com o dedo um parágrafo assim composto: “Além da catálase, existe nos peroxíssomos enzimas que participam da degradação de outras substâncias tóxicas, como o etanol e certos radicais livres. Células vegetais possuem glioxissomos, peroxissomos especializados e relacionados com a conversão das reservas de lipídios em carboidratos. O citosol (ou hialoplasma) é um colóide…”.

Como é que eu consegui viver até aqui sem saber disso?!!!

Fernanda, minha neta, é uma jovem que, neste final de ano, estará sendo triturada pelo maldito vestibular. Estudou o ano inteiro. Sempre foi boa aluna. No exame do ENEM do ano passado, a que se submeteu apenas para saber como era, tirou 8,5. Mas não serviu para nada. Este ano deverá submeter-se ao exame de 2022 e também ao dito vestibular, desta feita para valer. Não sei como se sairá. Mas temo que enfrentará, como de costume, “provas difíceis”, que, na verdade, serão provas maldosas, ardilosas e velhacas, compostas de “pegadinhas”, que não se prestam para testar o conhecimento do vestibulando.

Em exame vestibular passado, por exemplo, pediu-se para o candidato “caracterizar o ciclo hidrológico e explicar como as atividades humanas podem alterar a dinâmica do seu funcionamento” (!). Soube-se depois que era apenas uma questão sobre a crise de falta de água… É cômodo para os burocratas da educação, na tranquilidade de seus gabinetes, preparar armadilhas para os vestibulandos, desafiá-los com tarefas cifradas e frases rebuscadas e sem nenhuma objetividade. A eles pouco importa que o candidato já esteja fragilizado pela própria situação, pela disputa acirrada, pela insegurança da idade e por um horizonte que lhe parece cada vez mais distante.

Pois é, minha querida Fernanda, você que só quer ser médica. Para tanto, deverá saber que as células vegetais possuem glioxissomos, peroxissomos especializados e relacionados com a conversão das reservas de lipídios em carboidratos. Mas não sei se será capaz de explicar como a atividade humana pode alterar o “ciclo hidrológico”.

Ao que parece, professores que preparam questões para os vestibulares não têm propriamente interesse de aquilatar o saber dos alunos, não estão à procura de novos discípulos. Querem é saber se eles são espertos o suficiente para descobrir o que se esconde por trás das indagações formuladas.

Vai lá, Ferzinha querida. Dá de dedo nesses espertinhos. E que Deus a acompanhe.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
Esta entrada foi publicada em Célio Heitor Guimarães e marcada com a tag , , . Adicione o link permanente aos seus favoritos.
Compartilhe Facebook Twitter

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.