A ‘estupificação coletiva’

Leitor assíduo do jornalista Hélio Schwartsman, da Folha de S.Paulo, raramente discordo de suas opiniões. Em regra, estamos de acordo. Pois agora descubro outra afinidade que me liga ao prestigiado articulista: ambos (ainda) não temos celular. Segundo Hélio, ele vem experimentando na pele uma das formas de exclusão, que seu filho, bem-humorado, batizou de QRCodismo. E argumenta que o fato de não ter celular – ou, como diz a jornalista e escritora Vanessa Barbara, compor o “combalido Grêmio Pan-Americano de Repúdio ao Celular” – “não costumava ser um problema”, mas concorda que “nos últimos tempos, o cerco à minoria desprovida desses apetrechos vem se fechando”. Explica: “Cada vez mais, empresas e instituições apostam em avanços tecnológicos baseados nesses aparelhinhos sem se preocupar em oferecer alternativas”.

Sou testemunha disso. Já não posso estacionar nas ruas controladas pelo Estar curitibano, não tenho acesso a certos documentos públicos nem a informações de instituições bancárias ou financeiras. Até o serviço de delivery de certos restaurantes deixou-me de atender por faltarem-me aplicativos como WhatSapp, ipod, ifood e coisas do gênero. Isso sem falar do QR Code (daí o QRCodismo citado pelo filho de Hélio), aquele código de barras que precisa ser escaneado com a câmera do celular.

Como acha Schwartsman, não ter celular é uma opção, da qual ainda não me arrependi, mesmo que, quando informo esse fato, ao preencher uma ficha cadastral, o atendente me olhe como se eu fosse um extraterrestre.

Estima-se que haja, hoje, 8,4 bilhões de aparelhos celulares, isto é, mais do que o número de habitantes do planeta, estimado em 8 bilhões. No Brasil, com seus 217 milhões de habitantes, existem em funcionamento 251,6 milhões de celulares. Coisa de louco! Então, continuo perguntando: como é que essa gente toda conseguiu viver tanto tempo sem celulares? Está certo, os pigmeus de Bandar usavam a linguagem dos tambores e os peles-vermelhas americanos, sinais de fumaça. Mas e nós, os cara-pálidos civilizados? É também certo que os impérios romanos e de Napoleão avançaram mundo adentro sem celulares; Jesus Cristo andou pregando na Galileia sem celular; aliados e nazistas entraram no tapa também sem um único aparelhinho celular… Hoje, não se vai nem à esquina sem a maquininha na mão, no bolso ou na bolsa.

Rubem Alves, que não tinha celular, ao comparar os jovens às maritacas, desvendou o enigma dos adolescentes e, por tabela, a dependência do ser humano ao celular. Afirmava Rubem que, como as maritacas, os jovens andam sempre em bandos, porque uma maritaca solitária e um adolescente solitário são aberrações. “Daí o horror que os adolescentes têm de casa: em casa eles são separados do bando” – pontuava o mestre. E completava: “Havendo cortado o cordão umbilical que os ligava aos pais, eles o substituíram por outro cordão umbilical, o fio do telefone”. E, como hoje telefone não tem mais fio, pelo celular.

Eis aí uma boa explicação. Se hoje ninguém (ou muitíssimo poucos) vive sem a companhia do celular; se hoje correm o risco de tropeçar nas mal traçadas calçadas públicas ou ser atropelado no semáforo; se hoje não se consegue fazer uma refeição, assistir a um filme, a uma peça de teatro ou a um jogo de futebol sem tirar os olhos da telinha, a razão é simples: medo da solidão, pavor de ficar isolado, desconectado.

Ocorre que, de posse de um aparelho celular, ninguém mais conversa ao vivo, não lê, não se instrui nem se informa. É a “estupificação coletiva”, no dizer do artista plástico Antonio Veronesse.

Por isso, vou continuar resistindo enquanto puder. Estou bem acompanhado. Do pessoal mais recente, além do Rubem Alves e de Ariano Suassuna, que já se foram, temos ainda Luiz Fernando Veríssimo, Chico Buarque, Ruy Castro e Hélio Schwartsman, para citar apenas alguns nomes de destaque.

Seríamos um bando de reacionários ao progresso? Talvez, mas isso pouco importa. O que importa é que continuamos a viver felizes sem aquela geringonçazinha. E não nos sujeitamos a rastreadores do governo, de alienígenas, de palhaços, dos bandidos trambiqueiros e das grandes corporações que se prestam a manter os indivíduos sob controle e domínio – como também afirma a já citada Vanessa Barbara.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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