A fuga

Ela não sabe precisar que período seria aquele, mas as vestes, a paisagem, as colunas úmidas e escuras sinalizavam para um momento qualquer na Antiguidade, em que medos, intrigas e as opressões reinavam. Quando a vida se configurava em um constante equilibrar de zelos, pânicos e inquietações. Por décadas, aquelas paredes sufocaram gritos, guardaram muitos segredos, sussurraram ofensas malignas, conspiraram, intimidaram e calaram as dissonâncias. Ela encarou de frente o extremo do sofrimento e não deixou que a desesperança a vitimasse a ponto de anular suas forças, minar seus ideais ou de fazê-la desistir dos seus objetivos. Baniu do pensamento o menor sinal de derrota e perseguiu, guiada pela intuição de uma luz interior, por vezes fraca e outras vezes ardente em chamas vibrantes, intensas, o distanciamento de um tempo que só lhe inspirava desconfortos, maus tratos e desconfianças. Nutria uma sensação desde sempre de que não pertencia àquele lugar, época e relações.

Nas suas mãos, um toque que ela reconhecia como a personificação do apoio e da fortaleza necessária à mudança de curso. Percorria em fuga a alameda debaixo das colunas do templo, com os dedos entrelaçados ao homem que lhe prometia, apenas com o brilho e o calor que emanavam do seu olhar, total cumplicidade e a estabilidade emocional sonhada, mas desconhecida. Até o medo de falhar na retribuição desses sentimentos não existia diante de uma conexão tão forte assim. Sozinha ela não iria muito longe, pois viveu atraindo quem ambicionasse explorar seus valores. Não foi fácil chegar até ali e aprender a confiar, mas tal encontro alimentava a cada instante a certeza tranquila de que conseguiriam escrever uma outra história, mesmo sob os vapores intoxicantes daquela época sombria… não se sentia mais sozinha, embora seu espírito expressasse naquele momento e ainda mais forte toda a extensão do próprio poder de decisão e da sua fé.

Ao empreenderem aquela fuga, os dois se distanciaram de um cortejo em que o algoz do casal era flagelado, açoitado e despojado, diante de uma multidão ensandecida e vingativa, de todas as suas acumulações e riquezas, adquiridas da expropriação do suor, do sangue e da inocência de muitas pessoas, além das incontáveis vidas ceifadas para erguê-lo ao patamar de autoridade em que se encontrava até bem poucos dias atrás. As mãos entrelaçadas levavam aqueles dois, agora livres, para longe de todo o horror pertinente às regras de aplicação da justiça naqueles tempos. Em nome de tudo o que já haviam enfrentado e resistido, não lhes interessava nem mesmo ver o fim merecido daquele ditador coroado em meio ao surto coletivo, agora abatido da mesma forma pela vontade dos seus oprimidos e pelos interesses traiçoeiros de outra parcela de ofendidos. Só desejavam correr para viver. Por muito tempo e juntos.

Ao despertar no século XXI, a moça começou a compreender, a partir dessa lembrança, as sensações que o rapaz de agora, dono do mesmo toque e energia que lhe inspiraram confiança e aconchego na Antiguidade, provocava na sua alma. Deixou, dali em diante, de estranhar a necessidade que tinha, seja em silêncio e nas projeções que desenhava com a imaginação, de tecer longas ou ligeiras conversas com ele. Sobre tudo e qualquer coisa que fosse, a mais simples ponderação, o mais imediato pensamento. Queria consultar sua opinião em toda hora do dia, poder falar de si e sentir de novo aquela mesma paz do encontro e do toque das mãos no instante mais desesperador e promissor daquela existência compartilhada. Também reconhecera no malfeitor do passado uma figura que lhe causava ainda inúmeras desavenças nos dias atuais e que insistia em impor mal disfarçadamente barreiras à aproximação do casal. Lembrava muito o bispo de Áquila do filme, responsável pela maldição que deu sentido à trama e conferiu ainda mais intensidade ao romance.

O noticiário à sua frente parecia mudo. Só concentrava sua atenção no momento da semana em que pousaria o olhar sobre um quadro que coubesse a moça, por sua vez. Desejava o reconhecimento e a complacência de um abraço espontâneo e dizia para si mesmo que ele moraria dentro daquele abraço. Toda hora, minuto e segundo faziam sentido. Tornara-se exaustivo encontrar uma combinação numérica isenta de significados ou que não comunicasse valores e simbologias, nem sinalizasse a inutilidade dos disfarces. Tudo simplesmente se revela, mesmo quando a intenção é negar, esconder ou esquivar-se.

O tal do acaso manifestava a todo momento pequenos movimentos na direção de onde nem se sabe ao certo como, quando e para quê chegar. Brotava do quadro uma afinidade sincera, estranhamente acolhedora e familiar. Sabia que levaria aquele olhar adiante, por longo período, encrustado em sua mente. Ainda que cercado de todo espanto e inquietude, ele sentia que só bastava ser ele mesmo para despertar também a atenção e o reconhecimento dela. Um dia, ele igualmente se lembraria em sonho da fuga do templo, deixando para trás os açoites e os festejos de vingança. A racionalidade que o municiou de garantias e de orgulhos no decorrer da vida é o que demarca a distância e a diferença de tempo entre essas duas consciências.

Como nos folhetins dos periódicos do passado, a história deles é contada em episódios, à medida e ao passo incerto que é vivida.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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