Tom Zé, a língua brasileira e a língua das línguas

Não é a primeira vez que Tom Zé compõe um álbum temático, inspirado por uma provocação conceitual e explorando a mina de um mesmo assunto. Estudando o samba (1976), por exemplo, é uma desconstrução amorosa do nosso maior gênero musical. Tropicália lixo lógico (2012) é um álbum ensaístico sobre o movimento polêmico dos anos 1960. Tudo, sempre, com aquela sua verve inconfundível que resiste a qualquer tipo de engessamento. Pois ideias e sonoridades entram numa fricção vivaz de ritmos, células polifônicas, interjeições aliciantes e onomatopeias, levadas no embalo dos motes, dos riffs e dos refrães. Há um fascínio irresistível no fato de que as ideias mais sérias, manejadas por ele, são também brinquedos reveladores e jogos de armar.

No caso de Língua brasileira, a sequência de canções girando em torno de um mesmo assunto ganha embocadura e amplitude inéditas. É que se trata, além de tudo, de um projeto grupal, em parceria com Felipe Hirsch e o coletivo Ultralíricos, associados a um conjunto respeitável de estudiosos das línguas, voltados todos para o espetáculo teatral que fez temporada marcante no Sesc Consolação, em janeiro-fevereiro de 2022, e no qual se incluíam as canções desse novo disco.

A noção de língua brasileira mobilizada pelo espetáculo e pelas canções não se reduz à ideia de uma língua única e monolítica falada dentro das fronteiras do país. Ela foi concebida como um magma de línguas em processo de impregnação e de metamorfoses, presentes e remotas, no qual tomam parte o latim culto e o popular, remetendo ao proto indo-europeu, ao proto-celta, aos fluxos e aos influxos do galego-português, do árabe, das línguas indígenas e africanas, potencializadas ao infinito pela multiplicidade dos falares. A língua é o leito de um rio caudaloso e acidentado, cheio de passados, de presentes e de futuros, que se liga ao oceano das línguas. A diversidade das falas desemboca, para usar a imagem de uma das canções, na unimultiplicidade da humanidade, onde cada homem, a cavaleiro das palavras, “é sozinho (…) / na casa da humanidade” (“Unimultiplicidade”).

A primeira faixa do álbum (“Hy-Brasil terra sem mal”) brinca com a coincidência entre o nome do país e o da misteriosa ilha “Brasil” presente no imaginário medieval celta. Ilha mítica que, segundo reza a lenda, se afastava e se escondia de quem se aproximasse. Numa de suas jogadas arrojadas e engenhosas, além de engraçadas e surpreendentes, Tom Zé aproxima a ilha-Brasil irlandesa do mito da terra sem mal que alimentou o profetismo tupi-guarani e que, ao contrário da vida eterna no céu cristão, prometia um paraíso encontrável na terra – mesmo que uma terra sempre por encontrar. A primeira parte da canção, a que fala do mar gelado da Irlanda, se apoia na célula repetida de um ostinato (palavra que designa um recurso musical frequente em Tom Zé, e que aparece ardilosamente ostentada na sua têmpora, numa foto do encarte do disco). A segunda converte-se no samba de um Hy-Brasil bem batucado que virasse uma utópica “ilha sem fuzil” e sem “bala civil”.

Em “Pompeia – piche no muro”, Tom Zé faz uma glosa libérrima e exata de um “chique piche” escrito em latim e encontrado num “muro nu” da antiga cidade romana. Pode-se resumir dizendo que, entre o mortal que ama e o mortal que não ama e que quer proibir o amor, entregue-se este último ao carcará e diga-se: “Cega, amassá e some!”.

A canção-título “Língua brasileira”, que já fazia parte do álbum Imprensa cantada (2003), teve tudo para ser retomada aqui, por razões evidentes. Em meio a um ambiente estilístico de alfaias lusitanas, vinhos e punhais, “mares-algarismos” nunca dantes navegados, “almas e abismos”, a voz que canta dirige-se à língua de Avis, essa “dama oculta e bela”, “visigoda e celta”, que não se furta, enquanto “Babel das línguas em pleno cio”, à África, ao mouro e ao gentio. Ao final, o fado dessa ilustre dama portuguesa se une ao nosso destino equívoco e musical pelas mãos de uma sortista: “A cartomante abre o baralho, / Abismada vê, entre o sim e o não / Nosso destino ou um samba-canção”.

E assim prossegue essa eletrizante farra poético-musical que junta a plasticidade dos fluxos linguísticos e das trocas antropológicas com a ferroada cáustica dos atritos e dos embates sociais. O mito da gênese cosmogônica guarani (“Gênesis guarani”) dá as mãos ao mito da gênese iorubá, que assume proporções grandiosas e arrebatadoras numa faixa épica de quase dez minutos (“A língua prova que”). Nela, a narrativa ancestral desvela a língua como a melhor e a pior das comidas, o veneno remédio da bendição e da maldição, a ser atravessado por dentro pela fresta e pela festa da sabedoria, num bate-rebate de sílabas.

“Índio desliga Jaraguá” nos lança nessa cidade-pauliceia capaz de tomar sem volta (mas não sem revolta) a terra do índio, fazendo jus ao sujo apelido que nela gruda, e cujo nome é “cu do Juda”. E “San Pablo, San Pavlov, San Paulandia”, resgata, num palavreado insubmisso e multilinguístico, os trabalhadores nordestinos, paraguaios (entenda-se, também, bolivianos, coreanos, africanos e todos os outros), que suportam o peso da cidade e limpam latrinas – palavra que se transforma afinal num peido vocal vingativo e reparador. “Metro guide”, por sua vez, faz um impagável contraponto entre o ascético pragmatismo norte-americano e o savoir-faire tropical através da lista comparada de telefones de serviço de Nova Iorque e de Irará.

Não nos percamos de “Clarice”, pequena canção delicada e linda, toda feita de jogos de aliterações e paronomásias (“carece Clarice esclarecer”, “tão solene e tão solar”, “corajoso coração”, “unguentos aguentar”…), fazendo florescer uma língua lunar secreta no “quarto-minguante que míngua”. Nem nos esqueçamos de “Os clarins da coragem”, balanço de um país “que até hoje não há”, que tarda demais, “que elege carrascos, / letais”, mas para o qual Tom Zé ergue uma clarinada augural desejando “que uma geração com ternura / se eduque em firmeza e doçura” nos clarins da coragem.

Salve esse extraordinário criador! Viva sua energia estimulante capaz de abraçar – sempre! – mundos sem fundo.

José Miguel Wiskik

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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