A mãozinha do diabo no corpo

Somos levados a supor que todos os eventos levam ao homem e são destinados a subservir as nossas necessidades. Esquecemos que o antropocentrismo é um antro de perdição, um saco de gatos escaldados. A razão nos faz obliterar o conjunto da obra: a natureza. Só na nossa imaginação as coisas são belas ou horrorosas, ordenadas ou confusas. A natureza é impassível. Ela flui. Autorizamos deformidades numa rocha ou numa árvore só porque elas não se prestam aos fins que desejamos. Instituímos o belo como sendo saudável. O feio como enfermidade. Você cata na praia só as conchinhas que acredita serem perfeitas. Perfeitas para quê? Para enfeite imperfeito.

O vinho corre em minhas veias. Estou em paz totalmente preparado para a guerra. Música no ar.

Pulo para o capítulo voltairiano. Sabe-se que a moral da época, século XVIII, permitia que uma dama acrescentasse um amante à sua ménage, se fosse feito adequadamente, respeitando a hipocrisia da Humanidade. A marquesa du Chatelet, com 28 anos, mulher de um insípido marquês, escolheu um gênio da época: Voltaire, de 40. Mas passavam o tempo, juntos, só em estudos e pesquisas. Óó, cupido, pra longe de mim! Bendito Castelo de Cirey!

Dulce est disipere in loco. Doce é perder o juízo de vez em quando.

Minha profissão é dizer o que penso, disse Voltaire, com o diabo no corpo. Il avait le diable au corps! A minha é desdizer o que os outros pensam. Ou o que penso que os outros pensam. O significado da palavra entusiasmo, que vem do grego, é emoção das entranhas, agitação interior. Voltaire pergunta: quantos graus existem nas nossas afeições? E responde: Acordo, sensibilidade, emoção, perturbação, surpresa, paixão, arrebatamento, demência, furor, raiva. Mas os meus amigos, diante de qualquer fato, diante do belo, do bom, do perturbador, não se perturbam e soltam um único, sonoro e definitivo: ducaralho! Em suma, o mundo assim se resume — sem sumo! Enlouqueço um pouco. Doce é. Docemente o vinho desce.

O Sol tenta ir dormir e pisca. Estrelas sentem agitação nas entranhas. E caem.

*Rui Werneck de Capistrano tem o diabo no copo

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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